Desafio Escrever um Conto Outubro de 2009 www.portugalparanormal.com A Vida e a morte no Sanatório em 1940 por clcaires Eram quatro horas da manhã o cachorro de casa latiu, levantei-me para ver o que era e, quando olhei, um grande arrepio subiu-me pela espinha dorsal. Era Clodoaldo Neves, um paciente de que eu cuidava e que havia morrido tempos atrás. Quase sem acção, imobilizado por aquela presença, fiquei transido. Foi quando ele me disse: - Fique calmo, está tudo bem, só vim responder a uma pergunta sua, sim estava certo... Virou-se e foi embora, enquanto eu permanecia ali parado, sem nenhum gesto, até não mais o ver. Fui recobrando o domínio do meu corpo e voltei para dentro de casa. Já no meu quarto, deitado, não conseguia dormir. Quando o dia amanheceu, saí para um pequeno passeio, mas aquela lembrança não me deixava quieto e, quando regressei a casa segui a rotina… Mas algo me fazia relembrar da última madrugada. E, por maior que fosse o meu esforço, não me recordava da pergunta a que ele tinha vindo responder… O dia passou lentamente, e antes de anoitecer, no meu pequeno consultório caseiro, resolvi fazer uma regressão autónoma de memória. Sentei-me relaxadamente e iniciei a minha retrospectiva, até chegar ao dia da última sessão de terapia de Clodoaldo. Visualizei mentalmente o momento em que lhe perguntei algo sobre ele... Bem, mas isso vou deixar para dizer mais à frente... Meu nome é Celso, trabalhei nos anos quarenta como psiquiatra num sanatório para doentes mentais, na cidade de Lins, no Brasil. Entre vários pacientes, havia um muito diferente dos demais e, apesar do seu quadro clínico não ser de muita gravidade, mantive-o por lá. Nunca trouxe grandes problemas ou preocupações de maior. Segundo a minha avaliação, na verdade poderia até mesmo ter-lhe dado alta, mas ninguém sabia dos seus parentes. O que sabíamos era que ele chegou no ano de 1940, com transtornos psicóticos, trazido pela polícia política da época. Eram anos muito difíceis aqui no Brasil, vivíamos uma pós revolução que nos levou à ditadura e, nesta época, infelizmente, era comum a prática de prisões irregulares e a tortura. Tudo em nome da manutenção da ordem social. Lembro -me em especial desse ano e de um rapaz negro, esguio, semblante bastante sofrido, aparentando 25 anos, talvez menos. O seu estado era de meter dó. Foi deixado no sanatório numa situação lastimável, com fortes evidências de ter sofrido torturas por meio de choques eléctricos. Estava sem documentos de identificação. Apenas o nome, Clodoaldo Neves, num papel, sem data de nascimento ou filiação. Isso era muito comum naquela época. Talvez ele fosse mais um daqueles desaparecidos políticos da ditadura, alguém que a família procura até hoje... No dia seguinte ao seu internamento, percebi que ele tinha amnésia profunda e que sofria de pânico generalizado. Ficava encolhido sempre em cima da sua cama, mas, com o passar do tempo, foi progredindo e respondendo ao tratamento. Ali há mais de três meses, Clodoaldo despertava para um quase sacerdócio de ajuda ao seu semelhante. Sempre calado, agia naturalmente em prol da comunidade onde vivia, ora fazendo um curativo, ora alimentando os mais fracos. Essa era a sua rotina e o que o motivava para continuar a viver. Muitas vezes lhe perguntei se queria ir embora e ele respondia: - Eu nasci aqui, não conheço a minha vida antes deste lugar, cá sou útil, esta é a casa que conheço, para onde irei? Encontrar-me com quem? Fazer o quê? Como eu era bem relacionado, uma vez por outra, tentava buscar informações que me levassem até à sua família, para lhe devolver a sua vida anterior, mas o regime político, apesar dos meus bons relacionamentos, era muito fechado e ninguém queria dar a entender, por pouco que fosse, que tinha alguma informação sobre o meu doente... Vendo aquele homem tão dedicado e feliz, sem ao menos se importar com tudo o que passara, resignado à nova vida que lhe fora imposta, resignava-me também e, sendo seu médico, estabeleci uma profunda afeição com ele, até não mais me importar conhecer o seu passado. Resolvemos mantê-lo no sanatório, por lá, enquanto ele se tornava num grande colaborador de muitas tarefas de auxílio aos demais doentes internados. Curioso e incrível era verificarmos que, por mais agitado que um paciente se encontrasse, pelo simples facto de estar perto de Clodoaldo, acalmava-se instantaneamente. Era inacreditável que os seus simples cuidados e curativos, quando alguém se feria, apresentavam melhoras muito rápidas. Lembro-me até de uma vez em que um senhor, já muito velhinho, caiu no pátio e fracturou o fémur e, após voltar da urgência do hospital, Clodoaldo resolveu comportar-se como seu enfermeiro. A calcificação dos ossos, que habitualmente duraria meses, solidificou em pouco mais de trinta dias. A partir daí, passei a prestar mais atenção ao carinho com que ele se colocava à disposição dos demais doentes. E sempre se notava evolução positiva nos quadros clínicos de todos eles. Nesse mesmo ano aposentei-me e Clodoaldo continuou por lá. Sempre que podia ia visitá-lo, ficávamos falando, falando, mas continuava sem nada se saber do seu passado. Até que, no dia 07 de Setembro de 1940, faleceu de morte súbita. Nunca mais fui ao sanatório após a sua morte. Porém era como se uma força mágica me atraísse para lá, sempre que me sentia desanimado. Esta foi uma história de vida e morte no sanatório em 1940. - Ah! A pergunta que eu lhe fiz, brincando, no meu consultório e que levou anos a ser respondida foi esta: - Você é um anjo?!... Hoje o antigo sanatório abriga uma escola municipal. No local onde ele foi sepultado, dizem que cresceu um arbusto e que todos os anos, no dia de São Clodoaldo, sete de Setembro, o arbusto se cobre de flores brancas e com aparência de anjos. - FIM -