Desafio Escrever um Conto Outubro de 2009 www.portugalparanormal.com A Vida e a morte no Sanatório em 1940 por Templa 24 de Dezembro de 1940 É noite de consoada, mais uma longe da família, uma família que, mal vim para aqui, quase se esqueceu da minha existência. Podia ir à aldeia, mas não me apetece. Sempre lhes foi difícil conviver com a memória de alguém enterrado numa floresta de ar rarefeito. Por isso, nunca tentaram visitar-me… Tinha mulher e quatro filhos quando a maldita doença me enclausurou neste sanatório, sem esperança e como um condenado à morte. Quase vim inaugurá-lo, ocupando a ala dos pobres. É o que eu sou, um pobre, embora, nas partes luxuosas, também haja ricos. Mas a segregação é pouca entre uns e outros. A doença irmana-nos, não há diferenças, somos iguais. Sempre soubemos que o destino era o fundo de uma cova, depois de cuspirmos pela última vez o sangue da morte. É um edifício bonito, da década passada, construído expressamente na montanha para curar a tísica pulmonar. Mas, tenho sérias apreensões quanto à sua sorte… No futuro, dele restará apenas o esqueleto, um moribundo que morrerá, dia após dia, de pé como uma árvore velha e sem serventia para boa sombra. Todos nós temos o nosso destino e o dele advinha-se triste... Permanecerei aqui para sempre. Não quero sair da prisão a que a amaldiçoada tísica me condenou. Farei desta casa a minha morada, tal como muitos dos meus amigos que aqui tombaram, vergados ao peso desta peste cinzenta que nos maltratou sem dó nem piedade. Agora até podemos privar com os vivos, com a liberdade que antes não tínhamos. Vamos a todo o lado, atravessamos paredes, deslizamos pelos corrimões, penduramo-nos nos plátanos da entrada e espreitamos para os claustros junto às janelas, de onde eu gostava de ver tremeluzir o sol por entre as árvores. Estou aqui com muitos desafortunados, uma legião de fantasmas de que faço parte, quando o corpo já não é limite. Tenho, porém, memórias eternas da desgraçada tuberculose… O Joaquim foi à terra, ao Douro, passar o Natal com a família. Apresenta melhoras e os médicos deixaram-no ir. Ficámos ambos doentes, depois de carregarmos centenas de sacos de mercadorias, dos comboios para a estação do Tua e desta para os comboios. Éramos os dois ferroviários. Quantas vezes, com fome e enregelados até à alma, não forçamos o corpo, até ele nos atraiçoar!? A seguir, juntamo-nos aqui, onde compartilhámos mágoas. Mas eu tinha de morrer primeiro… Fui a casa, uma única vez, antes de a minha mulher se esquecer de mim, nos braços de outro homem, um dos meus amigos da taberna, onde íamos beber os copos para esquecer a miséria dos tempos… Mas, ficar tuberculoso é uma maldição ainda maior do que a pobreza… É pior do que matar a família inteira, ir para à prisão e ser, depois, forçado ao degredo. Depois, decidi nunca mais por os pés na aldeia. Nem quando morri… Para quê voltar e apodrecer, ainda mais, no cemitério, sem ter ninguém que me pusesse umas flores na campa de terra em dias de finados?!... Soube com antecedência que morreria a 15 de Agosto de 1938. O António Norte, um dos meus companheiros, falecido cerca de um ano antes, veio lá do outro mundo com o cão, o Nestor, sentar-se aos pés da minha cama… Trazia ordens de me levar… Disse-me, entretanto, que tinha saudades dos nossos jogos de cartas, quando, junto com o Zé da Moura e o Raul, jogávamos a sueca debaixo das árvores, mal podíamos sair do interior da nossa prisão para o exterior, na nossa evasão… Mal soube do fim próximo, tratei de doar o meu corpo à Universidade de Coimbra. Tive a esperança de andar, depois de morto, onde nunca pude ir em vida. Os tuberculosos não passavam de “ os pobres os malditos” que conspurcavam o ar com inimigos invisíveis, tornando-se indesejáveis em todo o lado. Agora, levito por aqui e fumo cigarros Definitivos, encostado às colunas dos claustros, espreito por cima dos ombros dos vivos os filmes que passam no cinematógrafo, vou às salas de desinfecção mexer naqueles aparelhos de raio x com que nos radiografavam, e até espio as raparigas…Quantas vezes eu não senti falta de sexo, com a mulher que já não tinha… Alguns doentes já notaram presenças etéreas aqui. Já nos sentiram mas não têm medo. São os condenados a quem a família acha um estorvo, querendo-os ver longe da vista... Pobre de quem aqui vive, trabalha e morre. Pobres dos médicos e das irmãs enfermeiras, todos os dias a lidarem com tanta miséria. Às vezes sopramos-lhes para longe o ar que se preparavam para inspirar. É quando o sentimos carregado com a bactéria maldita. É também uma forma de agradecimento. Apesar de termos morrido, fecharam-nos os olhos com compaixão… Vou num pulo ver o meu corpo mumificado a Coimbra e peço-lhes que voltem no futuro, no ano de 2009, quando o Sanatório das Penhas da Saúde for uma ruína. Apontem a máquina fotográfica para a entrada principal e vejam o espírito de António Augusto, aqui a vaguear para sempre. Mas não se assustem. Respeitem-me, apenas. E, sobretudo, nunca duvidem da existência de fantasmas… Afinal, eu sou um deles… - FIM -