Desafio Escrever um Conto Março de 2010 www.portugalparanormal.com O Final dos Tempos por Gawen Seguindo pelo velho caminho de cabras, Maria andava pausadamente, trazendo consigo algumas couves e alfaces que apanhou na horta, apoiando-se numa velha bengala. O seu rosto outrora jovem, agora estava marcado pelo tempo. Enrugado. As suas mãos, as mais belas da aldeia, dizia quem a conheceu enquanto nova, seguravam com dificuldade a bengala. O Sol estava a por-se, reflectindo os seus raios dourados na ribeira que banhava a pequena aldeia alentejana, onde vivia desde pequena. Das vezes que foi a Lisboa, foi para ir ao “Senhor Doutor”, como costumava dizer. Era viúva, o marido morrera há muitos anos e os filhos partiram para estudar e nunca mais regressaram, apenas nas férias. Maria atravessou a ponte cuidadosamente e, depois de cumprimentar as vizinhas que se encontravam na rua na calhandrice, entrou em casa. O Inverno já ia longo. Com o sol a esconder-se, a casa começava a ficar cada vez mais fria. Maria pousou as couves e alfaces na bancada da cozinha e foi ao quintal buscar lenha para acender a lareira. Carregada, pousou a lenha e acendeu o lume. O crepitar do fogo depressa se fez ouvir, aquecendo a sala. Maria era uma mulher solitária, apenas acompanhada pelo seu gato Guizo que se enroscava no colo quando estava à lareira. Já era noite escura. Maria deixou que o fogo consumisse os últimos pedaços de lenha e, deixando apenas umas pequenas brasas, foi-se deitar no seu leito de ferro antigo. Apagou a luz e o silêncio reinou em toda a casa, estendendo-se por toda a aldeia. Apenas se ouvia um cão a ladrar ao longe, um mocho a piar ou um galo a cantar. Os grilos ainda não se faziam ouvir pois estava muito frio. À noite, as ruas da aldeia encontravam-se desertas, não se via vivalma, nem um traço de vida. Apenas nos dias em que havia festa na aldeia é que havia algum movimento até de madrugada. Havia sempre alguém que ficava na festa até de manhã, quer seja porque estava com os amigos e nem deu pelo tempo passar, quer seja porque a bebida já tinha feito algum efeito e o caminho para casa parecia mais escuro, longo e sinuoso do que realmente era. Nessa noite, não havia festa. A última tinha sido em Agosto, nas noites quentes de Verão. Maria ainda lá foi, sentou-se numa mesa, num alpendre onde estavam alguns grupos de pessoas a comer frango assado. Não comeu, apenas ficou a observar as pessoas. Uma menina de saia rodada cor de rosa, que dançava alegremente ao som da música, parando de vez em quando para jogar à apanhada com as suas amigas; duas mulheres, com os seus quarenta e poucos anos, conversavam observando o baile em frente ao palco, onde tocava um rapaz novo, ora acordeão ora teclado, conforme a música pedia e ao fundo, estavam os homens encostados ao balcão das bebidas. Enquanto observava a festa, Maria trocava dois dedos de conversa com algumas mulheres que passavam e a cumprimentavam, algumas eram da família, outras eram vizinhas ou amigas, havia outras que Maria nem se lembrava de ter visto, mas cumprimentava-as na mesma, não estivesse a sua memória a atraiçoá-la. Nessa noite, Maria sonhou com as festas de Verão, com as antigas romarias que haviam na aldeia, onde passavam as carroças enfeitadas e as pessoas saíam à rua com as roupas novas. Sonhou com o por-do-sol que costumava ver do cimo do monte, quando era ainda miúda - quando era gaiata, cachopa - como diziam lá na aldeia. Agora, as pernas já estavam fracas para subir ao alto do monte, até para ir à horta, do outro lado da ribeira, era com algum sacrifício. O dia amanheceu cinzento, Maria já tinha a lareira acesa e, junto às chamas, uma cafeteira com água para preparar um café caseiro. Já não tardava a chegar o padeiro, mas ainda tinha tempo de beber o café e ir até ao quintal ver como estavam as suas flores. Maria arranjou uma espécie de estufa improvisada onde punha as flores no Inverno, protegendo-as das temperaturas extremas e da queda de geada. Guizo, o gato de Maria, ainda estava enroscado na sua cama, junto à lareira. Quando Maria saiu, ele levantou a cabeça e observou-a, mas o frio e a preguiça fizeram com que não saísse do quentinho da lareira. Uma buzina forte quebrou o silêncio que ainda pairava na aldeia. Era o padeiro. As pessoas começaram a sair das suas casas, algumas ainda de robe e pantufas, as conversas, risos e algumas brincadeiras das poucas crianças que ainda moravam na aldeia começaram a surgir. Um burburinho começou a fazer-se ouvir e as mulheres começaram a juntar-se em volta da carrinha. Maria também se aproximou. Ana, uma mulher um pouco mais velha que Maria, tinha falecido durante a noite. Vivia sozinha, à pouco é que a vizinha que costumava passar em casa dela a encontrou já morta, deitada na cama. Ainda atordoada com a notícia, Maria levou o pão e foi para casa. Um forte pesar abateu-se sobre a aldeia. Ana era a mulher mais velha, agora, era Maria quem ocupava esse lugar. De certa forma, não se surpreendera com a notícia. Custava sempre, é sempre triste ver partir alguém, mas não era inesperado. Maria, com os olhos rasos de água, sentou-se num banco perto da lareira e Guizo aninhou-se no seu colo. Relembrou os tempos em que, tanto ela como Ana eram novas e saudáveis e brincavam juntas pela aldeia. Ainda trabalharam juntas no campo. Agora, Ana já não voltaria. A morte passou pela sua casa, entrou de mansinho e, sem que Ana se apercebesse, pegou na sua mão gasta pelo tempo e levou-a com ela. Maria enxugou as lágrimas, levantou-se e foi ao quarto vestir as suas roupas pretas e por o seu xaile negro pelos ombros. A roupa de luto estava guardada para ocasiões como esta. Na noite de velório, o vento soprava forte e o frio lá fora entranhava-se até aos ossos. De vez em quando, um mocho piava ao longe. A porta da sala onde decorria o velório rangia com o vento e a madeira dos bancos estalava. O intenso cheiro a cera denunciava os velões acesos junto ao caixão. Maria manteve-se desperta durante toda a noite. Outras vizinhas estavam presentes, muitas para por a bisbilhotice em dia, falando desta e daquela como se estivessem num café, outras ficavam apenas umas horas, voltando depois para casa. Tinham os filhos e os maridos em casa para tratar, não podiam ficar ali uma noite inteira, diziam elas. Havia ainda outras que, tal como Maria, se mantinham acordadas e em silêncio, recordando os tempos que viveram com Ana. A noite passou, triste e lentamente. No dia seguinte, o sino da igreja fez-se ouvir. Uma mancha negra inundava a rua da aldeia. Mulheres, homens e algumas crianças seguiam em marcha lenta. Na frente, seguiam quatro homens que carregavam o caixão. Toda a aldeia tinha parado. Ouviam-se os passos e algumas conversas em surdina. Por momentos, o tempo ficou suspenso por um ténue fio, com os olhos postos na pequena multidão de pessoas que seguia de cabeça baixa. Não se ouvia o vento, não se ouviam os pássaros. Da Natureza, apenas se ouvia o silêncio. Maria seguia à frente, logo atrás do caixão da sua amiga. As pernas fracas e o cansaço que se apoderou dela não a impediu de chegar ao cimo da rua e, finalmente, entrar no cemitério. No momento em que o caixão desaparecia sob o solo, Maria aproximou-se e, em silêncio, atirou uma pequena rosa. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, contornando as rugas acentuadas da sua pele. Este era o último adeus. Maria afastou-se da multidão que agora rodeava a cova onde, lentamente, a terra cobria o caixão. Ouviam-se prantos e choros, mas Maria já seguia o seu caminho de volta a casa. As cegonhas voltaram aos seus ninhos. Esvoaçavam pelo ar, recolhendo galhos para recompor as suas casas, que com os temporais de Inverno, sofreram alguns estragos. E este Inverno tinha sido bastante rigoroso. Maria bem se lembrava dos dias de aflição, entre o Natal e a passagem de ano, quando choveu sem parar durante dia e noite. O Sol não se deixou ver nesses dias, permanecendo escondido por detrás das espessas nuvens negras. Ainda houve uma noite de forte trovoada. Os relâmpagos iluminavam a casa, seguidos de um forte ribombar dos trovões. Faltou a luz e os velhos candeeiros a petróleo voltaram a ganhar vida. Agora, o pior do Inverno já tinha passado. As noites já se tornaram menos gélidas e até já se ouviam as rãs a coaxar na ribeira. A Primavera aproximava-se e isso já se notava na Natureza. Os campos que foram fustigados pelas chuvas torrenciais e pelos fortes ventos, estavam agora verdes e com as primeiras flores a desabrochar timidamente. Maria retirou as flores da estufa improvisada e deixou-as no pátio, a apanhar a luz directa do Sol. Guizo observava atentamente um gafanhoto que estava na borda de um dos vasos, cercando-o e vigiando-o. Aproximou-se e, timidamente, tocou-lhe com a pata. De um salto, o gafanhoto pousou no chão, logo Guizo se aproximou de novo dele e, já pronto a atacar, foi surpreendido pelo pequeno gafanhoto que, rapidamente, voou para fora do seu alcance. O gato ainda ficou a olhar, mas decidiu então deitar-se ao Sol, com sorte, ainda aparecia por ali outro gafanhoto. Na horta, Maria contemplou as suas plantações. De um lado tinha as couves e alfaces, do outro, tinha algumas cebolas e tomates. Junto à ribeira, tinha bonitos jarros. Maria sentou-se num tronco de um árvore que há muito havia sido cortada e ali ficou, pensativa. Um leve brisa beijava-lhe o rosto, o Sol aquecia-lhe o corpo. A ribeira ainda ia cheia, mas já perdera a cólera que a assolou no Inverno, agora corria calma e docemente. Algumas libelinhas esvoaçavam de ramo em ramo, junto à água. Maria estava pensativa, perdida em momentos longínquos que já tinha vivido, em lembranças que mantinha consigo. Sentia-se cansada, os 78 anos de vida pesavam-lhe nos ombros. Começava a escurecer e, com medo de cair no caminho de volta, Maria regressou a casa antes de anoitecer. Nessa noite, ficou à lareira até mais tarde, com o pequeno Guizo a aquecer-lhe o colo. Bebeu uma caneca de café de cevada como jantar e ali ficou, a aquecer-se ao lume. Foi para o quarto já tarde, ainda tinha dormitado um pouco junto à lareira. Apagou a luz e deitou-se, ficando a casa na mais absoluta escuridão. A morte seguia-lhe os passos. A cada pôr do sol, aproximava-se da sua porta, espreitando pelo postigo, olhando pelas janelas. Nessa noite, fez-se de convidada e entrou. De mansinho, aproximou-se de Maria, que dormia tranquilamente, e beijou-lhe a face. - FIM -