Desafio Escrever um Conto Maio de 2010 www.portugalparanormal.com A Azáfama de Uma Bruxa por StoneColdDeath Bárbara acordou. Soergueu-se tremulamente, arrepanhando as duras e ásperas cobertas que parcamente a defendiam do sopro gélido da tempestade. Inúmeras fendas e frinchas que, mais do que desarranjos do seu minúsculo casebre, eram um símbolo da vida frugal que levava, iam deixando, quando o vento soprava com mais ímpeto, que uma friagem assassina fosse entrando e se instalasse no aconchego onde, segundo se diz, se dorme o sono dos justos. A medo, levou um pé ao chão enregelado, os dentes a ranger, dores de um reumatismo que nenhuma erva conseguiria já curar. A um canto enegrecido pelo fogo e pelos anos, iam mornejando, à medida que a noite envelhecia, umas cinzas que pouco teriam já de borralho. Um molho de giestas secas, atiradas sobre aquele arremedo de lareira, começaram lentamente a fumegar até que uma pequena chama cresceu e se multiplicou. Uns gravetos por cima, e o conforto da noite estaria já garantido. Puxando de um rude banquinho, sentou-se, Bárbara. O semblante, onde largas décadas haviam lavrado e semeado amarguras, permaneceu, por momentos, plácido e tranquilo, por momentos uma alma recostando-se e dormitando ao calor do lume. Recordava. Aos velhos, tudo o que se lhes permite são recordações, lembranças, memória. A companhia dos iguais, a pouco e pouco lhes vai sendo levada quer pela morte, quer pelo terem-se, simplesmente, tornado esquecidos aos demais. Mas só os velhos morrem a sorrir. Primeiro, chegou, vinda de um agora sol primaveril que lá fora verdejava, uma menina que brincava, saltitava, colhia flores pela sua beleza. Sua avó, no entanto, sentava-se a um canto, pisando algo num almofariz mais velho do que as suas velhas memórias. A mãe, essa, partira, colhida pelas sezões quando Bárbara ainda gatinhava sobre a erva macia que atapetava a entrada para a pequenina casa. A menina cresceu. Certo dia, entrou António, filho do ferreiro da aldeia, pedindo a sua avó, pelas chagas de Cristo, que lhe acudisse. O pai, ao tornar há dois dias de ferrar a égua do moleiro, caíra da mula acometido por umas febres que, valesse-o a Virgem Santíssima, o deixara prontinho para entregar a alma ao Criador. A avó, que caíra na cama para em breve fechar eternamente os olhos, apresentou-lhe Bárbara, já entendida na arte de curar com ervas. Que fosse ela, que o paizinho estaria curado num credo com moça tão prendada. Foi. Adelino, o outrora robusto moleiro que ia já ficando como um passarinho de tão fraco que estava, robusto continuou. E, se sortilégio houve, não foi o único. António, com os seus dezassete anos, não mais conseguiu esquecer os olhos, as mãos finas, a voz suave e fresca da salvadora de seu pai. Menina e moça, perdoe o leitor a pastoril referência, casou-se, tornou-se mulher. Já nos povos das redondezas se ouvia falar de tão doce casal. Ele, homem de préstimo e cuidado, que nunca punha ferradura que tão cedo caísse. Ela, que toda a mazela curava. Dizia-se até que el-rei mandara secretamente emissários a sua casa para que lhe arrancasse um infante das garras da morte e que, por milagres de Bárbara e por graça de Deus, o principezinho florescia mais rijo do que nunca, pelo que farta tença, entregue pelos mesmos emissários que a chamaram, havia sido concedida. Verdade ou não, o facto é que, sem grandes riquezas, nada faltava na pequena casa. Vieram, então, as invejas. Certo dia, martelava António o ferro diante da sua oficina, passou o Raul da venda, que lhe atirou: – Cautela, António, que te acoitas com o Dianho… – Ó Ti Raul, aqui trabalha-se como Nosso Senhor trabalhou para nos criar – riu, prazenteiro. Nada percebera. O homem volveu: – Acautela-te, homem, que corre por aí que tua mulher tem artes de Belzebu. Cura com veneno, nada lhe falta. Cuidado… António, pouco dado a zaragatas mas tão pouco a brincadeiras de tal sorte, ergueu o malho. – Não lho permito, Ti Raul! Quem disse? Quem foi? – vociferava já o ferreiro, brandindo o ponderoso maço acima da cabeça ao arremeter sobre o Raul da venda. E este, retorcendo o sorriso, ergueu as mãos: – Calma, homem, que quem te avisa… António cortou a frase a meio, não queria ser avisado, sua mulher era uma santa. E ao ouvir Raul falar novamente do Diabo, mas desta vez com o epíteto de Chifrudo, António, cuidando que era a ele que assim o chamavam, desfechou o maciço ferro sobre a cabeça do taberneiro, que, sem uma palavra, caiu morto. Estava ainda o ferreiro, lançando as mãos horrorizadas à cabeça, de volta do corpo do Ti Raul quando um facão o trespassou cruelmente, lançando-o e deixando-o a arquejar, em sangrentos borbotões, sobre aquele que fora já vingado antes que alguém tivesse tido tempo de clamar um ó da guarda. João, filho do Raul da venda, fizera justiça imediata. Bárbara ficou sozinha. O filho que carregava no ventre fora, logo à nascença, para junto do pai. No povo, diziam que era o diabo que estava a fazer as cobranças. Mas as más-línguas, com a necessidade, ficavam por momentos esquecidas. Na doença, todo o maledicente povo esquecia o anátema que votara a Bárbara, a qual fingia ignorar o temor e tremor de quem lhe batia à porta. Falava-se de processos, de justiça. Segundo as bocas do povo, o juiz de fora, a quem Bárbara curara em tempos a erisipela, preparava-se para conduzir ao Santo Ofício um processo no qual a identificava como feiticeira. Alheios aos nojentos preceitos do Martelo das Bruxas e à estultícia de um homem chamado Sprenger, tudo o que sabiam era que Bárbara seria queimada na fogueira, e isso era suficiente. Com ou sem fogueira, todos, porém, lhe encomendavam mezinhas, rezas e curativos, todos lhe pagavam conforme podiam, com medo de que um calote os tornasse alvo da satânica fúria desta mulher que saía, às Sextas-Feiras, para as encruzilhadas. A curandeira, ou ervanária, como se lhe preferir chamar, conhecia já esta história de ir dançar com o Tinhoso, ou Menino Lúcio, como diziam também. Mas a fogueira, por enquanto, não vinha. À medida que ia envelhecendo, Bárbara murmurava com cada vez mais frequência, acachapada ao calor do lume: – Ainda haveis de ter razão… Até que, numa ominosa Sexta-Feira, ao pôr-do-sol, saiu silenciosamente de casa. A noite, ainda salpicada de uns restos de invernia, erguia-se mansamente, com apenas uma ponta de lua que a iluminasse. O perfume de madeira queimada que ascendia das chaminés dissipava-se com o casario, cada vez mais esparso. Já por um caminho de terra batida, ladeado por eiras e lameiros que negrejavam ao luar taciturno, embrulhou-se um pouco mais no xaile, cerrando bem os dentes para que não batessem, não sabemos se de frio, se de medo. Adiante, a encruzilhada. Estugando o passo tanto quanto a idade o permitia, chegou finalmente ao seu destino. Nada aconteceu. Expectante, com um sorriso de escarninho triunfo ou triste resignação, também isso não saberemos, olhava em volta e esperava. Chegava-lhe, de um outeiro, o queixoso pio de uma coruja. Na serra, lá ao longe, cães, ou lobos, ululavam ao nocturno astro, talvez implorando que se descobrisse um pouco mais. Também Bárbara desejaria poder fazer o mesmo, mas não à lua. Debalde a longa espera, nada chegava, a não ser os pios, uivos e latidos que se cruzavam nos caminhos maiores da noite. Decidida a acabar com todo aquele disparate, voltou-se furiosamente, rasgando, no ímpeto de atacar o caminho de regresso a casa, as costas de uma mão num silvado que se espraiava pelo muro de granito. Como se o sangue tivesse ígneas propriedades, o arbusto espinhoso desfez-se de súbito em labaredas, de onde se ouviram, em resposta à muda interrogação da velha, bíblicas palavras de uma menos bíblica voz: – Eu sou o que sou… E hoje, sentada à lareira, Bárbara recorda e despede-se. Amanhã ainda, à meia-noite, cumprirá na encruzilhada a sua metade de um pacto que, só para que não houvesse fama sem proveito, se prestou a firmar. - FIM -