Desafio Escrever um Conto Janeiro de 2010 www.portugalparanormal.com Viagem No Tempo por pontozero Nunca tinha visto um espectáculo assim. Luzes de todas as cores iluminam o céu. Sente-se um leve cheiro a pólvora mas ninguém se parece importar. Lá em baixo na rua, todos gritam e aplaudem, envoltos no fumo que lentamente vai descendo sobre as suas cabeças. É a primeira vez que assisto ao vivo a fogo de artifício. Sei o que é, pelos livros que li e pelos filmes da minha infância. Contudo não é só o fogo que me toca, mas principalmente a alegria contagiante de quem o fita maravilhado. São centenas. Homens, mulheres crianças. Novos e velhos. Todos se juntaram para ver o fogo. Celebram a entrada no novo ano procurando esquecer as desgraças dos trezentos e sessenta e cinco dias que deixaram para trás. Invejo-lhes a esperança, a vontade de serem felizes. Invejo-lhes a ignorância pueril em que vivem. Já lá vão dez anos desde que cheguei a esta cidade. Desde então estabeleci aqui o meu centro de pesquisa e faço deles o meu estudo. Observo-os de longe. Registo todos os seus movimentos, as suas emoções, as suas ideologias, as suas acções. Movimento-me por entre eles sem nunca desconfiarem de nada. Tomam-me por seu semelhante e confesso que o sou. Mas só em aparência. Tanto eu como a minha equipa partilhamos com eles apenas o código genético. Nada mais. Não nos comportamos como eles, não vemos o mundo como eles. Perdemos aquilo que têm de mais precioso – a inocência. Estão longe de imaginar o que o futuro lhes reserva. A eles nem tanto, mas aos seus filhos, aos filhos dos seus filhos, aos netos dos filhos dos seus filhos. Sorriem esta noite para o futuro que se vai revelando aos poucos. Longe de imaginarem que aquilo que tomam como aterrador nada mais é do que uma pequena amostra do que lhes poderá vir a acontecer. Desde o início da sua existência que os temos vindo a estudar, a observar, a testemunhar a evolução da sua espécie,...da nossa espécie. Por vezes surpreendem-nos e somos descobertos. Felizmente a sua mente fértil toma-nos por tudo menos por aquilo que realmente somos – eles próprios. Chamam-nos deuses, demónios, espíritos, fantasmas, até extra-terrestres. Depositam na imagem que têm de nós as suas esperanças e medos. Acusam-nos de divulgar profecias que desconhecemos, de lhes transmitir-mos conhecimentos e verdades absolutas que nunca existiram. Não se apercebem que tudo aquilo que hoje têm, todo o caminho por eles traçado dependeu única e exclusivamente deles. Nós fomos e somos meros espectadores do seu drama evolucional. Apesar da distancia cultural e temporal que nos separa, dou por mim angustiado quanto ao seu futuro e à incapacidade presente que têm de realmente evoluírem enquanto espécie. Ao longo da história, desde os seus primórdios civilizacionais, recaem nos mesmos erros, percorrem infindáveis círculos de evolução e regressão. Incompreensivelmente não parecem aprender. Ou se aprendem é apenas de forma temporária. Desejo contar-lhes a verdade. Saberem quem somos, quem são. De onde viemos. Para onde se dirigem eles. Contudo não posso. Estou impedido quer por razões éticas, profissionais como pelo controlo severo que a nossa Organização possui sobre nós. Como cientistas que somos, observamos os nossos antepassados da mesma forma como eles observam os seus ratos de laboratório. Como investigadores estamos proibidos de interferir e imagino que a minha angústia não deve ser diferente da de um biólogo a ver uma vulnerável cria de leão a deslocar-se sozinha e inconscientemente para um grupo de hienas esfomeadas. Um leão... gostava de ver um leão sem ser em fotografias ou filmagens antigas. Como podemos chegar a esta situação? Como conseguimos ser tão irracionais, nós “homo sapiens”, perante as consequências dos nossos actos? Desejo contar-lhes tudo... mas não posso! Seria tão inconsciente quanto os seus históricos erros. Qualquer interferência, qualquer interacção com o objecto estudado poderia ter consequências devastadoras sobre o nosso mundo, a nossa civilização. Apesar da severidade e crueldade de quem nos controla e governa as nossas famílias, temo ainda mais a reacção de quem desejo salvar. Foram muitos os que anteriormente, tomados pelos mesmos sentimentos de empatia e solidariedade que me tem assolado, procuraram avisá-los do perigo que o seu futuro corre. Pobres mártires. Alguns ainda andam por aí, pelas ruas. Tomados por loucos ou mendigos, vejo-os nas sarjetas a balbuciar verdades rejeitadas por quem as deveria ouvir. Ostracizados pela nossa organização e ignorados por quem queriam salvar. Crianças imbecis. Seguem as suas verdades fantasiadas e não sabem ouvir quem possui verdades diferentes. Refugiam-se nos seus mundos egoístas e cegos caminham para o abismo. Talvez mereçamos mesmo o destino que nos aguarda. No fundo herdamos os erros dos nossos antepassados. Nada mais somos do que o produto da sua estupidez. Para quê salvá-los? Deveriam ser extintos já à nascença, por se terem revelado o cancro incompreensível que se tornaram. Sabem disso e não parecem querer saber. Muitos de nós observamos as suas vidas na esperança de que os seus actos nos surpreendam, mas no fundo sabemos que tal não é possível. Se isso viesse a acontecer, já teríamos sido informados das mudanças no nosso mundo. Tanto quanto sei, continuamos a viver no pesadelo totalitário e artificial em que vivemos. Somos meras formigas operárias a seguir ordens que nem sempre compreendemos. A nossa liberdade de escolha é nula. Existimos, mas não vivemos. E tudo o que existia à nossa volta extinguiu-se. Chega! Irei abandonar a equipa e juntar-me aos que me precederam na sua missão suicida. Poderei ser tomado como louco, agredido e expulso para as ruas, mas acredito que serei mais feliz enquanto mendigo livre do que formiga operária. Terminará assim o meu relatório. Concluo o meu trabalho com a noção de que apesar dos seus defeitos, os nossos antepassados merecem ser alertados. E quem sabe, não conseguirei aprender a saber o que é ser-se inocente e ter esperança... - FIM -