Desafio Escrever um Conto Fevereiro de 2010 www.portugalparanormal.com A Minha Vida Noutra Reencarnação por Nightshade (Conto Vencedor) Um voo nas Asas do Passado A sua visão enevoada abrangia apenas um pedaço de céu límpido, o céu de um radioso dia de Inverno. Uma pomba branca como o marfim elevava-se suavemente nos ares, o adejar de suas asas um breve aceno de despedida. A pomba elevava-se cada vez mais, até se tornar um ínfimo ponto branco. A luz do sol cálida acariciava as suas faces geladas naquela manhã de Domingo. O silêncio tocava canções de embalar que só ela conseguia escutar. Os seus olhos cansados ardiam enquanto um rio de lágrimas inundava o seu rosto magoado. Apenas a sensação do chão empedrado sob o seu corpo que se tornava cada vez mais leve. Serena e suavemente, ela fechou os olhos para o mundo. Era o fim e uma calma surpreendente apoderou-se dela. «Não desejo morrer, mas é essa a vontade de Deus e do Destino. Não quero desaparecer. Quero viver mais uma vez e prometo que serei uma pessoa melhor se tiver mais uma oportunidade». *** Naquele amanhecer fresco de Domingo, Miguel dirigiu-se ao escritório de seu amo a fim de averiguar se ele precisava de alguma coisa antes de o seu criado ir à missa. Os outros empregados ainda não se tinham levantado e o silêncio era apenas interrompido pelos pássaros que migravam aos bandos. Ao contrário do que era habitual, a pesada porta de carvalho escuro do escritório encontrava-se fechada, dando a entender que o conde se encontrava a desempenhar uma tarefa que requeria alguma privacidade. Miguel bateu suavemente à porta com relutância, não obtendo contudo qualquer resposta. Após ter esperado cortesmente alguns segundos, voltou a bater com mais firmeza, mas o resultado foi o mesmo. Uma terceira vez. Uma quarta já a servir-se do punho fechado. Alarmado pela ausência de resposta do seu amo, gritou o seu nome e arrombou a porta, temendo o pior e ignorando as futuras represálias pela sua ousadia. O conde dormia com a cabeça oculta no seu braço, envergando como de habitual a sua camisa de seda branca com folhos e o seu fato de veludo negro. Os seus longos cabelos encaracolados derramavam-se na secretária, uma cortina sedosa da cor da noite. Vendo as cortinas fechadas, Miguel apressou-se a abri-las enquanto chamava: - Mestre, já são horas de acordar. Estão quase a tocar as matinas. Impaciente e temeroso pelo facto de o seu senhor continuar a ignorar os seus chamados, aproximou-se cautelosamente do homem e abanou-o suavemente. O seu corpo encontrava-se tão frágil e amolecido como o de uma criança. - Senhor, acordai! Algo estava errado. Miguel ergueu a cabeça do conde com rapidez, mas este continuou a não reagir e o seu tronco inerte foi encostado ao assento sem esforço pela parte de seu criado. Com as mãos a tremer, Miguel contemplou com a respiração entrecortada pelo terror o rosto extremamente pálido de seu senhor e os seus olhos abertos e vidrados, fitando o além. O peitilho da sua camisa estava manchado de sangue húmido e uma adaga encontrava-se enterrada no seu peito até aos copos, estes cravejados de esmeraldas - Acudam! Pelo amor de Deus, alguém me ajude! O Senhor está morto! *** Se há alguma palavra que me defina e à minha vida, essa palavra é «agridoce». Trabalho numa livraria de livros em segunda mão bastante frequentada por jovens e coleccionadores, a Livraria Antiquária. Apesar de não desgostar de lá trabalhar, por vezes sonho em possuir um emprego diferente. Sei lá…um trabalho mais bem pago e que permita que me deleite nas asas da imaginação, criando, inventando. Descrevendo. Apesar de não me sentir satisfeita com a minha vida, não passo a vida a queixar-me. A minha paixão pela Natureza e pelo passado fascinam-me sobremaneira. Apesar de viver num ambiente artificial e frio, passo pelas ruas sentindo com deleite a chuva acariciar o meu rosto, a beleza dos relâmpagos vistos da minha janela, os monumentos cobertos pela geada. Visito de vez em quando as igrejas e os cemitérios, os únicos lugares onde encontro um pouco de paz. Nunca conheci ninguém com quem me identificasse nem com quem pudesse partilhar as minhas ideias e paixões, pois nunca conheci ninguém diferente, especial. Já me cruzei meia dúzia de vezes com um homem que me fascinou desde a primeira vez que o vi, mas nunca tive coragem de abordá-lo. Ele deve rondar os vinte e oito anos, quando o vejo está sempre vestido de preto e usa as golas subidas do seu sobretudo comprido, ocultando parte do seu rosto. Mesmo assim pude constatar que o seu rosto era extremamente pálido e o cabelo cor de azeviche roçava-lhe as orelhas. Aquele homem fascinava-me, dando-me vontade até de segui-lo. Contudo, sou demasiado tímida e pouco ousada, optando por inventar dezenas de romances com aquele desconhecido, ao invés de tentar conhecê-lo e tentar tornar o desejo realidade. De vez em quando ainda sonho com ele. Tal como esperava, a semana passou calmamente e não recebi presentes nem me deram os parabéns. Tinha agora vinte e seis anos e previa mais um ano previsível e monótono. Contudo, num Sábado frio e enevoado, fui visitar novamente o cemitério e deambulei por lá ao acaso. Ao olhar distraidamente para o lado oposto da fileira de túmulos onde me encontrava, avistei o homem desconhecido envergando um sobretudo de cabedal e luvas do memo tecido. Que sujeito invulgar. Quando ele pressentiu que o observavam, voltou-se e escondi-me atrás de uma lápide, esperando não ter sido vista por ele. Aproximou – se de uma campa e depositou um ramo de rosas vermelhas, contemplando curvado a lápide com uma tristeza palpável. Desta vez pude esperar que ele se retirasse, sem que ele me pudesse ver. Mal o vi sair pela arcada de estilo gótico, dirigi-me até à campa que o desconhecido visitara e aproximei o rosto, tentando decifrar o que lá estava escrito. Não consegui distinguir a fisionomia na foto desbotada, mas fui capaz de ler o texto gravado: Luísa Barbosa, 1981-2001. «Amada filha, irmã e amiga. A Terra devorará a tua essência, mas o tempo não poderá obliterar a memória da tua curta passagem pelo Mundo». Vidas que se cruzam Não faço ideia do motivo, mas sempre que passo por alguma situação no mínimo estranha, acabo por sonhar com o objecto dessa mesma situação de formas indiscutivelmente insólitas. Numa daquelas noites de insónia insuportável, entretive-me a ouvir música até altas horas, acabando por adormecer de auscultadores nos ouvidos. Sentia frio e vi-me numa rua deserta, molhada e escura sob um céu de chumbo, carregado de nuvens sombrias. Tentava alcançar o final da rua extensa, mas por mais que me esforçasse por avançar, os meus pés continuavam no mesmo lugar. Queria pedir ajuda a alguém, mas estava muda e sem forças. Tinha medo de estar em algum lugar perigoso ou pior, morta sem o saber. Quando estava prestes a deixar-me cair no chão, tive a visão de um barco e de uma mancha de sangue, surgindo logo depois lá ao longe a silhueta de um homem vestido de negro. Ele estendia a sua mão na tentativa de me chamar ou alcançar, mas a distância entre nós foi aumentando consideravelmente, até o transformar num minúsculo ponto negro. Lembro-me de ter pensado no nome daquele homem e desmaiado. Dificilmente me esqueceria daquele sonho, o qual não passava disso. O que me tocou profundamente não foi o facto de ter sonhado com aquele homem, mas sim as emoções que senti, o laço que nos unia e parecia tão natural, como se nos conhecêssemos há séculos. O destino tratou de voltar a permitir que encontrasse o homem misterioso, num a manhã de Agosto. Vi-o entrar num estabelecimento com ar ligeiramente decadente e segui-o pouco depois sem hesitar. Nunca fui o tipo de pessoa que perseguisse alguém, mas tinha de saber o que ele iria fazer àquele edifício. Sentia-me atrevida e mais viva que nunca. Ao encontrar duas portas fechadas no interior, encostei o ouvido para tentar descobrir em que divisão o desconhecido se encontraria, mas não tive muito tempo para sequer tentar, visto o mesmo sujeito ter aberto a porta de supetão, fazendo-me cair ao chão. Senti-me corar até à raiz dos cabelos, mas ele não disse nada, limitando-se a olhar-me com um ar ligeiramente divertido. Só quando ele se retirou é que me ergui e voltei a respirar normalmente. Ainda atordoada pelo «encontro imediato», dirigi-me à porta de onde saíra o desconhecido e hesitei antes de bater, advertindo-me que se batesse àquela porta, poderia descobrir algo que provavelmente me desagradaria. Contudo, estava cansada de recuar perante qualquer desafio e bati duas vezes à porta com uma energia desnecessária. Pouco depois um homem baixo e de cor negra abriu a porta, sorrindo-me. - Boa tarde, menina – cumprimentou ele educadamente – tem consulta marcada? - Consulta? E que serviços o senhor presta? – Não resisti perguntar. O homenzinho fitou-me confuso, pensando que estava a troçar dele. - Se não sabe que consultas faculto, então que faz aqui? – Perguntou ele por sua vez. Senti-me ruborizar, envergonhada pela minha atitude de há pouco e limitei-me a olhar o homem, tentando inventar qualquer coisa coerente, odiando-me naquele momento por não saber mentir. Constatando que estava a perder o seu tempo comigo, ele suspirou e disse com calma contida: - Olhe, tenho coisas importantes para fazer. Portanto, se não se importa, agradecia que se retirasse ou então não me incomodasse mais. Quando a porta começou a fechar-se, empurrei-a e insisti, sabendo que não teria mais nenhuma oportunidade para desvendar o mistério. - Espere, por favor. Deixe-me explicar-lhe o motivo de ter batido á sua porta. Juro que não foi por mal. O homem hesitou, mas acabou por voltar a abrir a porta, convidando-me a entrar. Ele sentou-se numa poltrona de pele castanha e cruzou as mãos na barriga, fazendo um gesto para que me sentasse numa cadeira de pele preta à sua frente. - Então explique lá o que veio cá fazer – pediu-me. - Como queira, mas não é para fazer juízos de valor sobre mim no final – adverti-o. - Dificilmente julgaria as tuas acções, visto ouvir histórias que ao contar ninguém acreditaria. - Mas afinal, o senhor é médico ou psicólogo? O homem riu-se e abarcou o escritório com um movimento da mão. - Acha que um médico utilizaria tantas cores e enfeites no seu escritório? Cartas de Tarot? Mapas astrais? Não minha querida, sou um médico de espécie diferente. Um médico do destino. A propósito, ainda não me disse o seu nome. Não adivinho os nomes das pessoas como se estivesse a prever o tempo. - Chamo-me Nádia. - Muito prazer Nádia. Posso chamá-la por tu? - Claro – respondi, sentindo a tensão quase tangível aliviar-se quando o homem quis saber o meu nome. - Eu sou... - Já sei. O Professor Omar Salina. Tem o seu nome na secretária – interrompi com altivez, repousando o rosto numa mão. O Professor Omar manteve-se em silêncio por um longo momento a olhar-me, como se esperasse que fizesse algo. Interpretando o seu comportamento como um gesto de despedida, fiz menção de levantar-me. - Onde é que vais? Não estava a brincar contigo até agora. Visto não ter mais consultas marcadas hoje, tenho todo o tempo do mundo para te ajudar. - Sem compromissos? - Perguntei, desconfiada. - Sem compromissos, palavra de honra - garantiu ele – Então, diz lá o que te trás por cá. - Pensava que tinha muito que fazer hoje. Foi o que me disse há bocado. Ele deu uma gargalhada bem-humorada. - Que menina engraçada. És tímida, mas quando te sentes em segurança, não tens papas na língua, pois não? Sorri-lhe, sentindo-me reconfortada pela sua compreensão e à-vontade. - Vá, conta lá ao Professor o que te aflige. Ó menina, que lhe fiz eu para corar desse forma? Precisa de um copo de água? - Não é necessário. Vou contar-lhe tudo, mas peço-lhe que tudo que não troce de mim. - Dou a minha palavra. Respirei fundo e expus-lhe a minha situação, evitando olhá-lo nos olhos. Quando mencionei o homem desconhecido, fiquei surpreendida ao ver Omar abrir muitos olhos num sinal de reconhecimento. Quase vacilei na minha narrativa ao notar o seu ar visivelmente preocupado e obscurecido, como se aquele aspecto bonacheirão que exibia há pouco caísse como uma máscara. Contudo, fez um gesto para que continuasse. - Até que me atrevi a ir mais longe e decidi bater-lhe à porta – concluí. Despojado da sua atitude condescendente, o Professor Omar suspirou e levantou-se, enchendo dois copos de água numa mesinha de apoio situada num canto da divisão. Deu um grande gole num copo e ofereceu-me um. - Olha Nádia, não te quero assustar, mas o caso é bem mais sério que imaginas. Posso ficar com o teu contacto? É um meio necessário para te ajudar. Achei estranho aquele homem tão erudito levar a sério a minha situação no mínimo ridícula, mas não protestei e escrevi o meu número de telefone e o e-mail numa folha que me estendeu. Após guardar o meu contacto numa gaveta, sorveu mais um pouco de água e falou comigo com um ar extremamente sério e profissional: - Diz-me Nádia, interessas-te pela teoria da Reencarnação? Anuí entusiasticamente. - Normalmente não faculto informações confidenciais sobre os meus clientes, mas abro uma expressão para ti. - Qual é exactamente o seu problema? - Intervim. - Acredita-me quando digo que aquele homem encontra-se numa situação bem pior que a tua. Bernardo é um homem bem-parecido e bem-sucedido na sua vida, excepto no campo amoroso. Ele pura e simplesmente não consegue amar ninguém para além de uma amizade e, inclusive, foi por sua causa que a sua melhor amiga, aquela cujo túmulo viste no cemitério, se suicidou. Apesar de Bernardo ser capaz de tudo por aquela mulher, não foi capaz de corresponder aos seus sentimentos, como se possuísse alguma deficiência emocional. Além de assombrado e atormentado pela culpa do sucedido, é constantemente assombrado por vultos e vozes em sua casa. Aos poucos foi-se habituando e perdendo o medo, mas a determinada altura as vozes ameaçaram matá-lo. Uma certa vez, uma sua vizinha bateu á porta de sua casa enrolada no seu roupão e falou com ele de uma maneira estranha, a voz demasiado grave e estridente para uma mulher. Ela ameaçou matá - lo e disse-lhe que nem nesta vida se livraria dela. Acusou-o de ser a causa da sua morte e regozijou-se por nunca ter tido um filho dele. Quando Bernardo me telefonou a pedir-me ajuda, levei o material necessário para um exorcismo, mas quando lá cheguei, a vizinha tinha desmaiado e não se lembrava do que fazia ali, vestida daquela forma. Já passava das três da manhã quando este episódio aconteceu. Arrepiante, não? Concordei, transtornada e arrepiada, sentindo pele-de-galinha pelo corpo todo. - Mas que tenho eu a ver com a história desse homem? Não o conheço de lado nenhum! - Retorqui, cada vez mais confusa e com um certo receio do que poderia descobrir. Omar levantou-se e fez um gesto a indicar que deveria erguer-me. - Olha, Nádia. A minha intenção não é assustar-te nem pretendo obrigar-te a fazer algo que não queiras. Se não te sentes bem e preferes ir embora, entendo. - Não nego que me sinto assustada, mas já que cheguei tão longe, não pretendo voltar atrás – decidi-me. - Muito bem, então segue-me. Segui-o até um quarto contíguo, o qual era integralmente pintado de branco e continha apenas uma cama alta, uma mesa com objectos estranhos e uma cadeira. - Podes deitar-te se assim o quiseres. Diz-me: gostarias de fazer uma sessão de regressão? - Adoraria, mas normalmente essas consultas são muito dispendiosas e a minha carteira anda esfomeada. - Como já te tinha dito, não terás de pagar nada. Sempre quisera passar por aquela experiência, mas sentia-me receosa devido ao que o Professor Omar me contara. Contudo, poderia não ter mais oportunidades para usufruir de consultas gratuitas e acabei por aceder. De súbito, ao fechar os olhos e inalar o cheiro a limpo e sentir sobre a pele o aspecto frio daquela sala, senti uma tontura e pareceu-me visualizar o mundo ao contrário, como se um livro extenso da minha vida se fechasse e outro mais pequeno se abrisse, prometendo conter algo de perigoso. - Descontrai-te, Nádia. Não tenhas medo, pois estás segura aqui comigo – ouvi Omar dizer-me, como se se encontrasse muito longe. Senti o silêncio ressoar nos meus ouvidos e o meu coração bater com intensidade, como se tivesse entrado no interior do meu corpo. Segundo O Professor, não adormeceria e entraria num transe consciente, podendo dizer-lhe o que veria. - Mantém-te serena. Diz-me, o que estás a ver? O livro abriu-se e folhas empoeiradas pelo tempo revelaram a sua história. *** Itália – séc. XVI Vogando sobre as Águas do Destino Maria sentia-se deveras preocupada naquela manhã. Frederico, o seu amado pai, encontrava-se cada vez mais doente, incapaz de se levantar do seu leito e tossindo as entranhas, empapando os lençóis de sangue. Infelizmente não lhe era possível velar por ele, pois necessitavam do pão de cada dia na mesa e só trabalhando Maria poderia providenciar o mínimo de comodidades. Trabalhava na Basílica de São Marco, encarregada de a limpar diariamente. Aquela magnífica igreja robusta e extremamente delicada no seu interior, recheada de imagens de santos Bizantinos e coberta por três magníficas cúpulas sobre cada nave, era pura e simplesmente sublime. Maria nunca se cansava de olhar em volta enquanto limpava o chão e polia o altar-mor e os candelabros. Um dia acordou de manhã e foi verificar o seu pai, sentindo de súbito um mau pressentimento. - Pai, quer comer alguma coisa? - Perguntou ela, aproximando uma vela do rosto do pai. Ele encontrava-se em repouso com uma expressão invulgarmente pacífica no seu rosto descarnado e as mãos cruzadas no peito, como um defunto em seu caixão. Tentou acordá-lo, mas estava gelado. O seu amado pai morrera e agora estava só no mundo, desolada. Pelo menos Giuseppe, um seu amigo de infância, passou a vir cumprimentá-la. -Bons dias, menina Maria, saudava ele todas as manhãs no mercado, sorrindo-lhe. Não passou muito tempo até que Maria ficasse encantada com o jovem simpático, apaixonando-se por ele. Por vezes ele falava que desejava casar-se com ela, o que a fazia sonhar. Uma vez queixou-se a Giuseppe num dos seus encontros, dizendo-lhe que ralhavam com ela por não estar a cumprir o seu dever como deveria. Giuseppe olhou-a com intensidade, os seus olhos verdes cintilando de regozijo e disse-lhe; - Se não quiseres trabalhar mais na Basílica, posso arranjar-te um trabalho em outro lugar? - Onde? Em algum asilo infestado de doenças? Giuseppe riu-se e prendeu uma mecha do cabelo da jovem atrás da orelha. -Claro que não. Achas que te faria trabalhar num lugar desses? Soube que estavam a precisar de uma criada na casa de um mercador viúvo muito rico. Pietro Delia Casa. - O quê? Aquele mercador que se veste de negro e dizem ter vendido a alma ao diabo? - Perguntei, indignada, Giuseppe anuiu solenemente, mas rodeou-lhe os ombros com um braço, apaziguador. - Sei que não te agrada deixar um lugar santo para trabalhar na casa de um discípulo do demónio, mas é a única solução que vejo para melhorares a tua vida. Se trabalhares para aquele homem, não terás de te encontrar com ele. Talvez nunca o venhas sequer a encontrar, pois possui os seus criados pessoais e são sempre homens. Não me parece que venhas a conseguir uma oportunidade melhor que essa. Que achas? Maria esfregou os olhos, confusa e receosa de dar algum passo em falso e acabar por ser vítima da danação eterna. - Mas e se Deus me castigar ou até me fulminar com um raio? Tenho medo – disse eu, estremecendo ao pensar nas chamas do inferno. - Não te preocupes, querida. Comigo aqui a te proteger, mal nenhum te acontecerá. Além disso, não poderás ser condenada nem os outros criados por algo que não fizeram. A justiça divina não funciona assim, não é verdade? Anuí, contudo sentindo-me contrariada. - Vou pensar primeiro no assunto, então. - Tens até amanhã para pensar. Se demorares muito, vais perder esse emprego para outra pessoa - advertiu ele. Maria despediu-se e prometeu pensar no assunto. Não vendo outra saída, encontrou-se com Giuseppe no dia seguinte e informou-o da sua decisão: aceitava a sua proposta, mas mal descobrisse que estava a correr perigo, deixaria aquela casa imediatamente. Giuseppe abraçou-a, levantando-a do chão e beijou-a entusiasticamente, acenando a alguém que passava atrás da jovem. No dia seguinte Maria apresentou-se na casa que Giuseppe lhe indicara e bateu à porta. Um homem na casa dos trinta abriu-lhe a porta. - Não damos esmola a esta hora da manhã – informou o homem com altivez. - Que eu saiba, não vos pedi esmola – espevitou-se Maria – Então que quereis? Saber se ainda precisam de empregados. O homem olhou-a de alto abaixo e franziu o nariz, dizendo de modo afectado: - Dirigi-vos à porta dos fundos. Maria correu até às traseiras da casa e uma porta abriu-se. Uma mulher vestida de negro e com um carrapito austero fez sinal para que entrasse e ordenou-lhe que se sentasse a uma mesa. Fez-lhe várias perguntas tanto de cunho laboral como de cunho pessoal, perguntando-lhe se era casada e com filhos, as suas possibilidades económicas e onde se situava a sua zona de residência, entre outras. Quando lhe perguntou sobre quem lhe divulgara a informação de que estavam a precisar de uma criada, a mulher de meia-idade franziu o sobrolho e abanou a cabeça. - Lamento, mas já não estamos a precisar de ninguém. Há pouco ofereci o trabalho a outra pessoa que veio antes de vós. Maria limitou-se a fitar a mulher com indignação, perguntando-se que mal havia feito. Ao levantar-se e alcançar a ombreira da porta, achou desnecessário ser comedida, já que não conseguiria o emprego e abordou a mulher: - Podeis dizer-me que mal fiz eu? Venho aqui pedir emprego e recebeis-me, fazeis demasiadas perguntas e agora mandais-me embora de mãos vazias? Por acaso quereis zombar de mim?! Olhando-a, ultrajada pelo atrevimento daquela jovem pobre e insignificante, a mulher aproximou-se a apontou-lhe um dedo acusador. - Como vos atreveis... Subitamente a mulher deteve-se ao ouvir o som de algo a bater na parede e retirou-se, subitamente pálida. Alguém lhe sussurrou algo do outro lado e pouco depois a mulher voltou, surpreendida por ainda encontrar Maria especada á porta. - Que fazeis aí parada? Fechais a porta e vesti este avental. Explicarei apenas uma vez o que vos cabe fazer e não admitirei preguiça nem que se ausente, mesmo estando doente. Nós aqui trabalhámos mesmo o que estejamos à porta da morte! Maria trabalhou arduamente logo no primeiro dia, mas era constantemente surpreendida por sons estranhos. - Está aí alguém? -perguntava, receosa de que fosse algum espírito que assombrava aquela casa. O que a distraía daquele lugar desagradável era a recordação de Giuseppe, sempre amável e disponível para a ajudar, tornando os seus dias menos solitários. Maria mal podia esperar livrar-se dos seus deveres e encontrar-se com ele, escudada do mundo cruel pelos seus braços. Contudo, a sua vida não melhorava com a existência de Giuseppe, pois as visões de um vulto branco e flutuante na grande casa onde trabalhava aterrorizava-a diversas vezes. Sentindo necessidade de desabafar os seus medos com alguém, abordou Aida a esse respeito. - Por acaso a senhora não tem medo de estar sozinha nos quartos desta casa? - Porquê? - Perguntou a mulher, indignada. - Não sei se estaria a sonhar, mas já ouvi alguém andar pela casa sem que eu visse vivalma e hoje de manhã vi um vulto estranho. O que se passa nesta casa?! - Toma juízo rapariga! Aqui não existem fantasmas. O único fantasma que reside nessa casa é o de um homem vivo. - E isso será possível? - Indagou Maria, aproximando-se mais. - Ainda não deves ter conhecido o nosso senhor. Ele é um homem estranho e parece saber tudo o que se passa nesta casa. Se fosse a ti teria cuidado com o que dizia ou fazia porque nunca se sabe onde o senhor Delia Casa se encontra. Desde que a sua mulher faleceu há uns anos, tem andado cada vez mais esquivo e rabugento. - Será verdade a história de que ele vendeu a alma ao diabo? - Bate nessa boca, menina! Vê lá se respeitas o teu patrão. Se não fosse ele, ter-te-ia mandado embora num abrir e fechar de olhos. Apesar de estranho, o senhor Pietro é um homem devoto a Deus e ouço-o rezar no seu altar diversas vezes. A culpa não é sua de que a sua família tenha sido desgraçada há décadas. - O que aconteceu? -perguntou Maria, acometida por uma curiosidade mórbida. - A curiosidade pode ser tão perigosa que se pode tornar morta -respondeu uma voz de homem vinda detrás de Maria. Pensando tratar-se do patrão, encolheu-se de medo, mas logo reconheceu o homem que lhe abrira a porta no dia anterior. Ele olhava-a com altivez e aproximou-se da mesa, servindo-se de um pedaço de pão. Maria sentou-se e escutou atentamente a narrativa de Miguel, horrorizada com os pormenores que ele referia com deleite. Segundo ele, Antonio Delia Casa, o avô de Pietro, queixava-se constantemente de ser um pobre diabo, filho de um mero cozinheiro, até que um dia um sujeito encapuzado prometeu-lhe fortuna se ele apenas picasse o seu pulso com a agulha que lhe estendeu. Cego pela ambição, obedeceu e surgiu de súbito a forma de um olho no interior do pulso. Pouco tempo depois daquele encontro, Antonio encontrou uma arca repleta de ouro enterrada no quintal e pouco depois casou-se com uma mulher formosa, a qual deu à luz uma criança com a mesma marca que o seu pai. Constatando que aquilo era obra do Diabo, Antonio tentou redimir-se, mas acabou por morrer devido a uma ferida que sangrava ininterruptamente no seu pulso. Deste modo a maldição passaria de pai para filho e os descendentes pagariam pelo erro de Antonio. - Então isso quer dizer que o senhor desta casa também é perseguido pelo demónio? - Interveio Maria, tentando ocultar o tremor que invadia o seu corpo - Que eu saiba não. O facto de o senhor Pietro ser devoto salvou a sua alma – concluiu o criado antes de se retirar. Quando tudo estava a correr bem, Aida disse a Maria que chegara a hora de cuidar de Pietro. Apesar de não a tratarem com afecto, Maria passou a ser respeitada após ter aceitei o que muitos não teriam aceitado. Na tarde seguinte Giuseppe pediu perdão por não ter comparecido ao encontro por motivos de trabalho (Maria nem sabia qual era o seu ofício) e perguntou-lhe como estava. Após a jovem lhe ter contado que tinha sido atacada e alguém a salvou, desconhecendo o seu salvador, Giuseppe coçou a cabeça e sorriu-lhe: - Fui eu que te livrei do atacante. Em vez de te carregar a casa por ainda ser longe, levei-te a casa do teu patrão, pois sei que raramente trancam a porta dos fundos. Também já lá trabalhei como moço de recados. Maria nem se atreveu a desconfiar da versão do jovem e chamou-lhe seu herói. Sem que pudesse evitar, a jovem assistiu ao impiedoso passar dos dias, como a água que jorra irremediavelmente de uma garrafa partida. Preparou o quarto de hóspedes para passar sabia-se lá quantas noites e pendurou o seu pequeno crucifixo na parede. Antes de se desfardar, engoliu em seco e levou o tabuleiro do jantar ao quarto do seu amo. A porta encontrava-se entreaberta e viu pela primeira vez o seu amo. Bateu à porta e baixou-se para colocar o tabuleiro no chão, mas logo se endireitou ao ouvir uma voz fria e inexpressiva dizer: - Entra. Maria estava tão nervosa que o tabuleiro oscilava sobren as suas mãos que tremiam. Depositou-o junto ao seu senhor e afastou-se, temendo ser atacada por ele. Contudo, os seus olhos cinzentos exibiam um brilho inteligente e o seu rosto um ar sereno. - Com que então sois a nova empregada? Estais satisfeita com o emprego? Maria fitou-o de olhos bem abertos, desorientada, e só alguns segundos depois anuiu timidamente, incapaz de falar. Aquele homem aterrorizava-a e a visão dele á luz difusa do candeeiro era terrível. - Estou a ver que os meus leais empregados pediram-vos que velásseis desta vez por mim. Podeis retirar-vos. Estou bem e não corro perigo, não fosse eu o filho do Diabo. Não é a assim que me chamam?! A jovem recuou, alerta quando Pietro se inclinou na sua direcção e lhe falou com amargura na voz, elevando-a a ponto de esta reverberar pela parede. Quando o senhor Delia Casa estendeu a mão para retirar o pão que se encontrava no tabuleiro, Maria encolheu-se contra o extremo da secretária, temendo ser atacada a qualquer momento. - Não é necessário que vos afasteis de mim como se fosse um monstro. Sou vosso patrão, não vos esqueceis. E exijo respeito! Quando Pietro retirou o pão do tabuleiro, a empregada viu a maldita marca da qual Miguel lhe falara e levou a mão ao coração, arquejando de medo. Então a história escabrosa sobre o demónio era verdade. E ali estava ela, à mercê daquele monstro! Parecendo ler os seus pensamentos, o senhor Delia casa esboçou um sorriso sardónico com os seus lábios finos e cruéis, aparentemente regozijando-se com o medo que suscitava na rapariga franzina. Com uma sensualidade diabólica, Pietro bebeu um gole de vinho no seu cálice de prata e dispensou Maria com um gesto. Esta não se fez rogada e nem se atreveu a olhar para trás, fechando a porta com violência. - Ninguém ordenou que fechásseis a maldita porta! - Vociferou Pietro, dando uma gargalhada assustadora, assustando Maria a ponto de a fazer correr ainda mais depressa, embatendo na parede oposta e deixando-a momentaneamente incapacitada. - Meu Deus, ajudai-me e livrai-me do mal - implorou ela, agarrando o seu rosário de contas de madeira e rezando fervorosamente ajoelhada junto à sua cama. O que Maria mais temia era que lhe acontecesse algo e não passasse daquela noite. Um dia Giuseppe pediu-lhe que deixasse passar a noite no seu quarto e Maria, por sua vez, mostrou-se relutante em oferecer a sua virtude, mas os beijos eloquentes do jovem acabavam sempre por a dissuadir das suas próprias decisões. Quando a noite chegou, Maria conduziu o namorado pela mão entre risos, abrindo a porta dos fundos. Porém, algo impediu que a porta se abrisse completamente e Maria espreitou pela porta, constatando que uma bengala encontrava-se encostada á porta, impedindo-a e a Giuseppe de entrar. - Por Deus, mas que é isto?! - Indagou Maria para si própria, temendo ser atacada pelo demónio, pois àquela hora Pietro encontrava-se sempre ocupado no seu quarto. Cedo se apercebeu que as suas conjecturas estavam erradas ao reconhecer o senhor Delia Casa emergir das sombras, segurando a bengala com um apoio encastoado de prata com o formato de um belo falcão com as asas abertas e equilibradas, permitindo assim que o seu dono facilmente a segurasse. Após ter observado por um momento fugas o belo castão da bengala, recuou a apoiou-se no namorado quando o homem diabólico transpôs a porta e empurrou com uma força espantosa Giuseppe, fazendo-o aterrar no carreiro do jardim. Levantando-se e abrindo a boca sem porém conseguir dizer uma palavra, olhou o homem que o olhava impávido com um ódio que assustou Maria e girou nos calcanhares, correndo como se a sua vida dependesse da sua velocidade. Quando este se perdeu de vista, Pietro agarrou Maria pelo braço com uma força que a magoou, enterrando as unhas na sua carne. - Nunca mais te atrevas a trazer aquele bastardo para minha casa, ouviste? És paga para trabalhares para mim e não para trazer homens para o teu quarto como se não passasses de uma reles rameira. Maria arquejou, ultrajada com a ofensa e viu-se a retirar com violência a mão que a prendia, plantando os punhos nas ancas: - Como vos atreveis a chamar-me semelhante nome? Aquele é o único homem que amo e em breve nos casaremos... - Ah, ah, ah, ah. Esta é boa - interrompeu Pietro, rindo com ironia - Casar? Como podes ser tão cega e desejar entregar-te ao homem mais desonrado de Veneza inteira? O que vedes naquele enjeitado? - Ele não é enjeitado nenhum! - Protestou Maria, furiosa com o atrevimento daquele homem mesquinho - Tem pais que o amam e ele é carinhoso comigo, dizendo-me palavras bonitas. - Palavras... O que são palavras senão pedras que caem num poço sem fundo e cedo se perdem de vista, enfeitiçando os mais incautos com encantamentos desonestos? Minha filha, estás cega e ainda insistes em argumentar que vês perfeitamente. Entra em casa. - Não entro! - Ripostou Maria, afastando-se do alcance do homem - prefiro dormir no jardim que partilhar o mesmo tecto convosco! Em vez de ameaçar despedi-la, O próprio senhor Delia casa manteve-se em silêncio e não contrariou os desejos de Maria e em vez disso, como se estivesse com problemas em controlar-se, torceu os lábios com força, parecendo estar a fazer um esforço descomunal para abafar uma gargalhada. Maria temeu que ele estivesse a ter mais um acesso de loucura e baixou a cabeça, seguindo-o até ao interior da casa e limpando as lágrimas sem que ele o notasse. Contudo, o maldito homem reparava em tudo e retirou um lenço negro bordado do seu bolso, estendendo-lho desajeitadamente. A jovem agradeceu debilmente e limpou os olhos com delicadeza, devolvendo o lenço ao seu dono. - Pronto, deixa de ser uma carpideira e ouve o que um homem bem vivido diz sem cobrar nada. Ele interpretou correctamente o olhar irónico de Maria, mas fingiu não ter notado. - Não sou obrigada a ouvi-lo, meu senhor, no que diz respeito à minha própria vida. Contrariou Maria, com ar desafiante. - Se aceitares o desafio que te vou propor, pagar-te-ei bem. - Não é necessário que me pagueis nada que nada tenha a ver com o meu trabalho. Já me pagais o suficiente, meu senhor. - E se vos der o que me pedirdes? - Depende do que quereis que faça - retorquiu Maria, cautelosamente. - Se fordes á taberna do Fabrizzio, encontrarás o teu namorado e talvez me deis razão quando digo que Giuseppe não é homem de confiança. - Como sabeis o nome dele? - Não há nada que escape a Pietro Delia Casa. Além disso, Giuseppe não é nenhum desconhecido, visto já ter trabalhado para mim. Então, que dizes quanto á minha proposta? - Não aceitarei nunca aceitar tamanha atrocidade, senhor. Ainda existem pessoas neste mundo que não passam a vida a prejudicar os outros - respondeu Maria, desejando com todas as forças poder infligir muita dor àquele homem cruel e insolente. Contudo, ele não reagia como um homem normal reagiria. O diabo comera-lhe o coração; devia ser esta a explicação mais plausível para tamanha insensibilidade. Pietro mostrou-se insatisfeito pela recusa de Maria, mas não insistiu. - Um dia verás toda a verdade e descobrirás quem é quem - limitou-se ele a dizer, afastando-se de Maria a coxear. Que estranho. Apesar de já ter sonhado com o seu patrão a persegui-la coxeando, agora é que tivera a oportunidade de constatar que ele realmente coxeava. Incapaz de conseguir adormecer àquela hora, decidiu explorar o sótão empoeirado e deambulou por entre objectos antigos que evocavam dias de juventude. Ao tropeçar num lençol, descobriu um retrato enorme de uma bela dama de vestido branco e cabelo ruivo, cujos olhos penetrantes lhe lembravam alguém. Ao contempla – lo, sentiu um arrepio e viu pelo canto do olho um vulto branco tocar com uma mão gelada no seu braço. O susto foi tão grande que sentiu uma tontura e desmaiou. O dia seguinte encontrou Maria deitada de bruços, coberta de pó e protegida por um cobertor de lã de cor indefinida. Quando acordou, estremunhada, sentou-se e olhou em volta, contemplando o sótão apenas alumiado por uma débil claridade que provinha da frincha da porta entreaberta. Era Domingo e Aida e Miguel já se encontravam de serviço, a governanta, olhando Maria espantada. - O que te aconteceu rapariga? Dormiste essa noite na rua? Envergonhada por nunca conseguir ostentar um aspecto tão impecável quanto o daquela mulher, tentou apanhar as mechas de cabelo louro rebelde sem grande sucesso. - Não senhora. Ontem não tinha sono e aventurei-me a ir ao sótão explorar um pouco. Sem saber como, adormeci mesmo lá. Mas juro que não tirei nada nem deixei nada fora do lugar! - Aida e Miguel entreolharam-se, boquiabertos. - Mesmo que tirasses alguma coisa de lá não faria falta a ninguém - comentou Miguel, pigarreando, constrangido - Não sei como conseguiste passar a noite naquele sótão. A maioria das empregadas que tinham o mesmo cargo que tu despediam-se após uma experiência naquele sótão. - Nunca vistes nada fora do normal nesta casa? - Indagou Maria, espantada. - De que é que estás a falar, rapariga?! - Perguntou Aida, visivelmente perturbada. Maria enrolou o dedo na bainha do corpete, sentindo - se acanhada e observada como se fosse uma aberração. - Nunca assistes a assombrações? Trabalhais aqui há uma eternidade e nem assim vistes nada?! Desde a primeira noite em que cá passei a noite, sou atormentada por um vulto branco e esvoaçante como uma cortina ao vento. Ontem descobri que se tratava da falecida mulher do nosso senhor. Juro por todos os santos que uma mão gelada tocou no meu braço. Sei que era a senhora retratada no quadro que se encontra lá em cima, aquela que tem um belo vestido. Os empregados da casa trabalhavam apenas metade do dia aos Domingos, mas Maria era a contemplada para velar por seu amo naquela noite. O que significava que não lhe seria possível encontrar-se com Giuseppe naquela tarde. Aborrecida, Maria sentou-se à mesa da cozinha, remendando as suas meias. Pouco depois escutou uns passos aproximarem – se e Pietro surgiu na ombreira da porta. - Boa tarde, Maria. Como vais? - Cumprimentou ele, como se não se lembrasse do que tinha acontecido na noite anterior. - Boa tarde, senhor. Vou bem, obrigada por perguntardes. Precisais de alguma coisa? Precisais de jantar... Pietro silenciou-a com um gesto, abanando a cabeça. - De momento não preciso de teus serviços. Sei que estavas ansiosa por encontrar o teu namorado. Pois bem, então ide ter com ele. Não quero ser incomodado por ninguém, pelo menos por ora. - Mas e se precisardes... - Queres parar de insistir em contrariar-me? Se disse que podes sair agora, apressa-te a aproveitar a minha magnanimidade momentânea. Apressa-te antes que mude de ideias. Ide! - Sim senhor. Obrigada - retorquiu Maria, levantando-se e subindo para o seu quarto, esquecendo - se do que pretendia perguntar ao seu amo mal o encontrasse. Arranjou-se como podia e penteou - se meticulosamente, sentindo o coração saltar de alegria por poder ver novamente o homem da sua vida Dirigiu-se à taberna de Fabrizzio e logo encontrou Giuseppe com os amigos. Ouviu-o dizer: - Brindem a mim, o homem mais inteligente no que diz respeito a conquistar jovens donzelas. - Ainda só a namoras. Esqueceste - te? - Contrariou outro homem a seu lado. - Sim, mas garanto que estive quase a desflorá - la ontem se o patrão não nos tivesse descoberto. - Hum, não me convence. Não vou apostar tanto dinheiro por apenas um namorico. Precisas esforçar - te mais - interveio um jovem barbudo por sua vez. Não, não poderia ser acerca dela que estavam a falar e inclusive a apostar, pensou Maria, abanando a cabeça, negando com ênfase. Contudo, para cúmulo seu, alguém perguntou a Giuseppe? - Como disseste que se chamava a rapariga? - Maria - respondeu o outro, bebendo o resto da cerveja de um traga. Maria não precisou de ouvir mais nada. Com os lábios a tremerem com o esforço para não desatar a chorar, a jovem empurrou as cadeiras que impediam o seu caminho e fugiu, correndo de tal forma que caiu quando já se encontrava mais afastada da taberna. Custava-lhe a acreditar que tudo aquilo não havia sido uma mera ilusão. Como poderia alguém ser tão cruel, conquistando o coração de outrem apenas para o usar e parti-lo aos pedaços?! Sentindo necessidade de ficar só, foi consolar-se a alimentar as pombas, tentando esquecer e reter as lágrimas que insistiam em surgir nos seus olhos. - Pronto, minhas queridas. Aqui estou eu - dizia - lhes ela, indiferente ao facto de as aves apenas visualizarem o pão com atenção, indiferentes à sua presença como se não passasse de um cesto que continha a sua refeição. Sentindo-se exausta, decidiu voltar para casa, mas tropeçou e caiu, sendo ajudada por um homem que por ali passava. - Estais bem? - Perguntou - lhe alguém à distância cautelosa de meia dúzia de passos. Maria olhou para cima e encarou o rosto preocupado de um comerciante judeu que normalmente passava pela praça ao fim da tarde para esticar as pernas, livrando - se da sua reclusão por algum tempo. A jovem anuiu e levantou - se penosamente, como alguém a ativesse pregado ao chão durante horas. - Agora estou melhor - respondeu Maria, evitando olhar o judeu de negro nos olhos, pois uma moçoila decente não olhava um homem nos olhos. - Ides para casa? – Perguntou ele. - Bem queria eu. Vou velar pelo meu patrão, o senhor Delia Casa. - Não gostais de lá trabalhar? - Seria melhor se ele não fosse um homem demoníaco – retorquiu Maria amargamente. - Pois é. Muita gente duvida que o demónio possa estar tão próximo de nossos lares, mas ele anda a rondar esta zona há muitos anos, resolvendo a manifestar - se apenas nessa agora. Minha filha, rezai muito. O vosso patrão está condenado, mesmo sendo isento de culpa. O seu avô foi o único responsável de sua desgraça e sua mulher também. - Que dizeis?! - Indagou Maria, sentindo um aperto no estômago ao sentir que estava prestes a descobrir o segredo de seu senhor. O homem contou-lhe que Pietro fazia tudo para se livrar do demónio, mas nunca conseguia tal proeza. A sua mulher, Caterina traía-o com o sapateiro e quando engravidou, o marido não quis reconhecer o filho. Mal a criança nasceu, a criança foi entregue à família do sapateiro e pouco tempo depois Caterina foi encontrada na sua cama, desmaiada e ensanguentada. O físico declarou que havia sido violada, mas o sangue e os ferimentos eram demasiado graves para serem fruto de maldade humana. Pietro não voltou a casar-se, não desejando que a sua maldição passasse para o filho. - Que horror! -excamou Maria, tapando a boca, horrorizada. Após despedir-se do judeu, teve de fazer um esforço descomunal para voltar a casa de seu amo. Tremendo de medo e abrindo a porta com enorme dificuldade, visto parecer que a maçaneta da porta estava sempre a escorregar - lhe das mãos suadas, entrou na casa e rezou um pai-nosso. Anoitecia e os pesadelos iriam começar uma vez mais. Quando se aproximou do escritório, viu pela frincha da porta que Pietro, de costas voltadas para ela, falava sozinho. - Limita-te a tornar a minha existência penosa e deixa os outros em paz. Ainda não chega que eu ofereça o meu corpo de livre vontade? - Dizia Pietro em tom colérico, apesar de baixo. Pareceu a Maria que ele escutava alguém enquanto se mantinha em silêncio, voltando a retaliar: - É como dizes. Não ofereço a minha alma porque essa é de Deus. O meu corpo não possui valor e está profanado pelo pecado. Este, podes usá-lo á vontade. Novo silêncio. - Sacrificar a rapariga? Para quê? Que tem ela a ver com tudo isto? Além disso não possui nada que te agrade. Nem mesmo a mim... Pietro pareceu ouvir algo que o desagradou a ponto de o fazer cerrar os punhos. - O que estás para aí a dizer? Ela é apenas minha criada e não possui um tostão nem linhagem. Para que a quereria para mim? Ela só serve para me trazer o jantar e limpar a casa. Novamente manteve - se silencioso e bateu deu um murro sonoro na secretária. - Que sabes tu, um mero esbilro de Satanás? Que sabes tu de amor para insinuar que estou interessado na minha empregada. Ah, vens agora recordar - me que a salvei ao ser atacada no outro dia? Apenas encontrava - me por perto e sabes que gosto de ser um bom cristão... Subitamente Pietro arquejou de dor quando a manga do seu casaco foi rasgada e um corte sangrento surgiu, escarlate como a visão do Inferno. - Isso, bate - me porque receias o nome do Senhor. Uma cadeira pesada foi projectada contra a parede por uma força invisível e o fogo da lareira diminuiu de intensidade. - Isso! Zanga - te, maldito! Estou cansado de tentar aplacar a tua fúria. Vê lá se deixas a rapariga em paz, ouviste? Subitamente as costas de Pietro ficaram tensas como uma tábua e ele voltou - se na direcção da porta, apanhando Maria em flagrante. Ela recuou inconscientemente ao reparar na expressão horripilante de Pietro. Os seus olhos emitiam um brilho febril e os maxilares estavam tão tensos que pareciam prestes a quebrar - se. Possesso e descontrolado, urrou e, parecendo tentar segurar uma força impossível, fechou a porta na cara de Maria e gritou. - Por Deus, Maria. Fugi! Sem conseguir pensar em outra coisa senão afastar - se dali, fugiu o mais depressa que conseguiu e alcançou a basílica, ofegante. Bateu à porta com urgência e esta foi aberta pouco tempo depois por um monge com ar estremunhado. - Preciso de santuário, por amor de Deus! Nos dias, meses e semanas que se seguiram, Maria perdeu a vontade de voltar a casa de Pietro e, apesar de desejar ardentemente saber como se encontrava, refugiou - se na basílica novamente como empregada de limpeza e de lá só saiu para alimentar as pombas. Contudo, mesmo mantendo-se afastada da casa de Pietro, uma noite ouviu um estrondo de alguém a deitar abaixo a porta de sua casa, constatando que era o seu antigo patrão, possesso. Assustada, saiu pala janela do quarto antes que ele a alcançasse. Felizmente aterrou num monte de sacas de batatas. - Obrigado, meu Deus - agradeceu ela, grata por não ter aterrado no vazio. Esquecendo-se que se encontrava de camisa-de-dormir dormir e descalça, correu pelos becos e pelas ruas, ignorando quem a olhava com indignação. Por mais que corresse, o homem ganhava cada vez mais terreno. Ficou confusa quando ele parou de a perseguir, parando com ar confuso e de súbito Giuseppe surgiu, parecendo desfigurado e fora de si. Agora era ele quem estava possuído, rindo e perseguindo Maria. Pietro acorreu a escondê-la atrás de uma casa. - Maria, sou eu novamente - garantiu ele, arfando e conseguindo cobrir a jovem com a sua capa de veludo negro. Rodeando os seus ombros com um braço, conduziu - a até sua casa e ajudou -a a deitar-se. - Não te preocupes, minha querida Menina Das Pombas - irei velar por ti enquanto o demo não me apanhar - confortou - a ele, beijando a sua testa com suavidade e coxeando em direcção á porta. Subitamente, Pietro voltou - se e fitou Maria com uma ternura impossível no olhar e esta retribuiu - lho, tentando reter as lágrimas. Quando começava a amar aquele homem e a desejar fazer tudo para ajudá-lo, inclusive enfrentar os seus maiores medos, acabava por perdê-lo para sempre. Ela sabia que a morte o colheria em breve. O signo da Morte pairava sobre a sua cabeça como uma nuvem negra. Incapaz de dizer uma palavra de carinho àquele homem nobre e atormentado, desviou o olhar e deixou - o ir. Quando amanheceu, Maria desceu imediatamente até à porta da rua e encontrou o judeu que lhe tinha revelado o segredo de seu antigo patrão. A aurora sangrava em tons de vermelho e laranja, prometendo um dia de sol radioso. - Que fazeis aqui? - Perguntou ela, intrigada. - O senhor Delia Casa pediu que velasse por vós. - Onde está ele? - Voltou para casa, dizendo - me que não queria estar perto de ti quando o demónio voltasse. Aterrorizada só de pensar no perigo que Pietro estaria a correr, afastou-se do judeu a correr, na tentativa de tentar salvar o homem das garras do demónio. Contudo, não consegui chegar ao seu destino, sendo atacada por trás por Giuseppe, o qual enterrou um punhal no seu estômago e fugiu, rindo com uma voz que não condizia com a sua. Maria caiu no chão, agonizante e a última coisa que viu foi o voo de uma pomba branca. Pietro encontrava - se sentado no seu grande cadeirão escuro do seu escritório, aguardando a chegada do demónio. Quando estava prestes a adormecer, a porta abriu - se e um vulto encapuzado abriu a porta sem a tocar, entrando com a fluidez do veneno que corre nas veias de um suicida. - Enfim, sós - disse Pietro, dando um gole na sua taça de vinho. O demónio arrebatou - lha das mãos e disse numa voz sibilante: - Estou farto de esperar que me entregues o que é meu por direito. Submete - te ou mato a rapariga. Pietro arquejou, aterrorizado, compreendendo o que se encontrava subjacente sob as palavras do demónio. - Mataste - a, desgraçado! - Bradou ele com a voz a tremer, traindo as suas emoções. Desta vez não deu a oportunidade ao demónio de o interromper. Abriu o seu casaco com violência, fazendo os botões saltar e expôs o peito. - Quem disse que a matei? - Perguntou o demónio. - Julgas que sou parvo! - Gritou Pietro, possesso pela raiva que o invadia - Se ela estivesse viva já me terias feito essa ameaça no dia em que ela aqui nos encontrou. Leva o meu corpo e volta para o inferno. A minha alma, essa nunca ta darei! Rugindo de fúria a ponto de o chão estremecer, o demónio penetrou no peito de Pietro e rebentou as costelas da sua vítima, devorando-lhe o coração sem deixar feridas visíveis. Assim a maldição terminou com Pietro Delia Casa tornado mártir de seu amor puro por Maria. *** O Triunfo do Passado Quando deixei de ver as imagens que me torturaram durante não sei quanto tempo, senti o rosto molhado de lágrimas e não consegui falar. Omar olhava - me com um misto de compaixão a afecto no olhar, também ele sem palavras. Notando o meu ar pálido, ajudou - me a chegar á casa - de - banho, segurando o meu cabelo enquanto vomitava. O meu corpo reagia antes da minha mente a tudo aquilo que tinha vivenciado há pouco. Todo ele tremia, acometido por convulsões. Levei um bom tempo para voltar ao presente e a primeira coisa que fiz foi olhar o relógio. Eram exactamente duas horas da tarde. Portanto estivera a reviver o passado durante quase duas horas e meia. Ao saber tudo o que sabia e certa de que Pietro e Bernardo eram a mesma pessoa, exigi: - Quero vê-lo. Imediatamente. Omar anuiu e marcou o número no seu telefone, segurando o auscultador com demasiada força. Durante um bom tempo esperou que alguém respondesse na outra linha, mas não obteve sucesso. - A esta hora ele deve estar a deambular por aí, novamente deprimido - anunciou Omar. Esfreguei os olhos e levantei - me da cadeira com dificuldade, implorando: - Professor Omar, por favor, ajude-me a entrar em contacto com ele quando o localizar. Estarei em casa. - Com certeza, minha filha. Vai com Deus. Seriamente abalada, voltei para casa e deitei-me na cama, sentindo-me doente. A minha mente levaria uma eternidade para digerir tudo o que descobriu na sua breve viagem a outra vida. Apesar de abatida e confusa, logo adormeci. No dia seguinte, sentindo que precisava de falar urgentemente com Omar, saí de casa logo de manhã e fui ao seu encontro. Quando ia a atravessar uma rua movimentada, perdi a consciência sem saber como, sentindo que caía num abismo sem fundo. Após o que me pareceu uma eternidade, senti que algo me puxava do abismo. Abri os olhos e a primeira coisa que vi foi uma mão pálida segurando a minha. Segui o resto do corpo e encontrei o olhar de Bernardo, pleno de ternura. - O que me aconteceu? - Perguntei vagarosamente, sentindo a boca seca. Bernardo deu - me um copo de água e respondeu, falando comigo pela primeira vez: - Estás em coma há três dias após teres sofrido um acidente. - Acidente? Mas não me lembro de ter tido nenhum acidente. - As pessoas que assistiram ao teu atropelamento disseram à polícia que paraste no passeio e depois avançaste para o meio da rua sem olhar os automóveis que passava. - Mas como é isso possível se tenho tanto cuidado ao atravessar? - Indaguei eu, indignada. O homem a meu lado olhou - me com ar preocupado e respondeu com uma expressão culpada: - Não foste tu. Foi o espírito daquela mulher que te possuiu. Senti as cores fugirem do meu rosto e estremeci, estarrecida. Fora possuída por um espírito logo após ter feito regressão. Ouvi atentamente Bernardo contar-me que o espírito era o da sua esposa na sua vida anterior, tendo sido exorcizada do meu corpo por Omar mal fui hospitalizada. Falámos também sobre nós durante horas e senti-me feliz como nunca me sentira antes. - Não te preocupes, Menina das Pombas - tranquilizou-me Bernardo - voltámos a cruzar nossos caminhos e nunca mais nos separaremos. - FIM -