Desafio Escrever um Conto Fevereiro de 2010 www.portugalparanormal.com A Minha Vida Noutra Reencarnação por Margarida Pelo que já vivi, por todas as tristezas e amarguras que tenho sofrido desde que nasci, mergulho na incerteza, na revolta por não saber o que fui, como fui ou que mal ou bem pratiquei. Se eu conseguisse atingir o transe e procurar esse meu eu esquecido, tirado da lembrança quando nasci, se pudesse entrar na minha reencarnação ou reencarnações talvez… talvez compreendesse e aceitasse o que sou neste momento, se é que sei o que sou ou se sou alguma coisa. Já nem me faço sentindo a mim mesma, estou tão cansada… acho que me vou recostar e meditar um pouco, elevar o meu espírito… quem sabe largo o meu corpo e a minha alma vagueie como uma detective privado em busca de segredos. Sinto-me leve! Sinto-me mas não me vejo… algo me puxa… aiiiiii vou entrar na minha existência, no ano de mil setecentos e oitenta vendo-me na pele de uma mulher linda, de boas finanças num pequeno palacete. A elegância perdura em cada cantinho numa limpeza extrema combinadas com um ambiente quente que se faz sentir pelos raios de sol que entram pelas grandes janelas e sem pedirem licença para entrarem. Apesar da correria da criadagem nos seus afazeres, vejo-me ali numa bela poltrona lendo um livro com uma expressão séria e pesada. Pareço ser jovem ainda mas carrego nos ombros todo o peso ignóbil do silêncio. No jardim duas crianças brincam sem preocupação, livremente como se fossem donas daquele espaço e o mundo lá fora além dos portões da propriedade fosse o espelho do paraíso. Da pequena capela soam seis batidas estridentes que me fazem estremecer o coração anunciando o ocaso, provocando lentamente o arrefecimento ambiental, soltando brisas agrestes, arrastando atrás de si gotas de humidade que se transformariam na madrugada em geadas, nos campos e nos corpos. Coloco o livro na enorme estante da biblioteca exactamente e milimetricamente no lugar que ocupava, sem deixar vestígio de ter sido removido. A mais nova criada pega nas crianças ao colo e recolhe-as para os seus aposentos, fico a olha-la por dentro da vidraça da cozinha. Fora condenada a servir até ao fim dos seus dias, assim se pensava, por um destino que o Senhor meu marido traçara ao prende-la com aquelas duas criaturinhas suas bastardas, pensando que a impedia que esta jamais se casasse e me castigasse com a sua presença por eu não ocupar e conceber. Não tardaria, irromperia pelo palacete adentro com o seu porte pesadão e austero a quem ninguém conseguia fazer frente, antes pelo contrário, todos se afastavam daquele furacão desimpedindo o seu caminho e respirando fundo de alívio por não terem sido abalroados por aquela força da natureza. No salão a mesa estava preparada para o jantar ordenado à última da hora para a família de meu esposo, a sua mãe austera, franzina, de nariz arrebitado e esguia, fazendo-se de matriarca, a quem ninguém ousava contrariar ou desobedecer. Os seus cinco irmãos mais novos, verdadeiros parasitas na sociedade, vivam às custas de uma pensão que lhes era concedida por meu marido e viviam pelas tabernas e bordéis da povoação protegidos pela velha senhora. As suas três irmãs já casadas, unidas a partidos por conveniência, não haviam conhecido o amor mas dessas uniões haviam dado frutos fazendo o orgulho da velha matriarca elevar-se à lua e muito diplomaticamente olhando-me de soslaio em jeito de provocação que me fazia sentir humilhada. Apesar do constrangimento, a senhora minha sogra todas as vezes que me visitava, sem prévio aviso punha a minha competência como dona de casa à prova se bem que nunca a vira desiludida. Nestas visitas inesperadas reservava-se o direito de se reunir comigo particularmente afim de saber em pormenor se me faltava algo e se era bem tratada pelo seu filho, se mantinha a criadagem no seu lugar para que não houvesse mais abusos. Apesar das aparências ela era já o despertar do feminismo naquele tempo ainda envolto de grande secretismo e somente com companhias femininas de total confiança. Era normal nesta época a mulher ser vista apenas como um ser humano de segunda categoria apenas com a única serventia de agradar os machos da sua espécie. Assim era conveniente que as fêmeas andassem sempre de rédea curta, o mais analfabeto possível e sem grande inteligência, bastava apenas que soubessem escrever o seu nome e às vezes nem isso convinha. Dona Maria Antonieta guardava a sete chaves um grande segredo depositando em mim a sua confiança e quase a sua vida. Aprendera a ler e a escrever, enganando toda a sociedade ao depositar a economia da família inteira aos serviços do Senhor António Marques, doutorado em finanças e que não era nada mais nada menos que a sua própria pessoa. Como as suas filhas não passavam de senhoras fúteis e de fraca inteligência, depositara em mim as suas esperanças para que continuasse os seus passos de modo a construir a ponta de um futuro que mudaria para sempre a história do homem no universo. Fora ela quem me ensinara a ler e a escrever dando-me continuidade a uma ginástica mental para que pudesse mais tarde eu mesma criar um pseudónimo masculino para gerir a economia familiar. Na biblioteca onde a nossa cumplicidade tinha um lugar de destaque, elaborávamos um plano a levar a cabo com muita calma e paciência de modo a calar as bocas das outras mulheres. O problema da minha infertilidade que tanta humilhação e tristeza me causavam, seria brevemente resolvido não fisicamente mas misteriosamente. Uma criada de uma amiga sua engravidara, não pretendendo manter a criança e como o filho dessa senhora não queria uma escândalo, fora estabelecido que para que a gravidez fosse levada até ao fim, lhe seria atribuído uma pequena fortuna de modo a reconstruir a sua vida num outro lugar onde não fosse conhecida, deixando para trás o recém-nascido. Durante uma semana Dona Maria Antonieta permaneceria debaixo do nosso tecto, levantando suspeitas sobre as minhas más indisposições (falsas claro), minhas tonturas e no súbito alargamento de minhas ancas. No final dessa mesma semana iria ser chamado um médico de sua confiança para diagnosticar o que se pretendia. Após a novidade seria preparado um quarto duplo para que durante o tempo necessário ela dormisse a meu lado sob o pretexto de me vigiar e afastar-me do senhor meu marido, para que este não exigisse os seus direitos conjugais podendo provocar um “ desmanche espontâneo” e não podendo descobrir que no lugar de uma barriga que transportaria um ser humano, teria apenas uma almofada a fazer volume. Posteriormente abandonaria o meu lar para permanecer no casarão de Dona Maria Antonieta “ dando à luz” uma criança prematura. A mentira não me agradava mas reconhecia que era um mal necessário ou ainda acabaria expulsa de meu lar e de meus bens caso meu marido morresse e os bastardos tomassem conta de tudo. Corria o risco apesar de tudo, do senhor meu marido durante a minha ausência ser tentado a aproveitar-se da mesma servente e fazer-lhe mais um filho. Mas Deus escreve direito por linhas tortas e essa mesma mulherzinha iria desaparecer das nossas vidas muito antes de se preparar a sua saída de cena pelas nossas próprias mãos. Dom Pedro o senhor meu marido receberia a visita de Dom Gonçalo seu amigo de infância, que vivia em França e se encantaria pela servente. Como já não carregava o símbolo da pureza Dom Pedro havia de revelar ao seu amigo que a serviçal havia sido violentada por um vizinho que não chegara a viver o suficiente tempo para lavar a honra da rapariga. Como era órfã de pai e mãe recentemente, ficara responsável pelos seus dois irmãos ainda de tenra idade (os bastardos). Num abrir e fechar de olhos a criadinha passaria de mulher do povo a senhora bem casada e com um grande estatuto social pelas terras de França. Quando chegasse a meu lar teria essa grande surpresa. E que surpresa teria o senhor meu marido... Tudo corria na perfeição, mesmo o enxoval do bebé seria perfeito, nesse tempo jamais era possível saber o sexo das crianças a não ser no próprio dia em que nasciam, por isso as futuras mamãs e as senhoras de família ou amigas costuravam roupinhas para ambas as situações. Dom Pedro encantava-se de nos ver às duas costurando e bordando o enxoval, ao contrário dos outros homens daquele tempo em que desejavam apenas filhos varões, Dom Pedro não se importava com o que lhe viesse parar às mãos, desejava apenas que fosse uma criança saudável e perfeita, apesar da mortalidade infantil ser bastante elevada, temia que tal desgraça lhe viesse bater à porta. Por outro lado aprendera a dar-me mais atenção lidando com a minha pessoa como se fosse uma jóia frágil e rara que tinha nas mãos e que não queria ver escapar por entre os dedos. Assim que a notícia se espalhou calando todas as más-línguas, outras tantas medidas haviam sido tomadas, acabariam os jantares de família, pois no meu “estado interessante” não era aconselhável tanto trabalho e preocupação para tais eventos fossem perfeitos. A partir daquele momento não seria importunada com conversas idiotas e provocatórias por parte das suas irmãs. Dom Pedro o senhor meu marido era um homem rude por fora mas muito consciencioso, justo, emotivo e até carinhoso de um enorme coração que só eu conhecia nesse seu interior. O tempo passava a uma velocidade estonteante obrigando-nos a preparar as nossas bagagens para o lar de Dona Maria Antonieta onde a verdadeira mãe, já estava instalada esperando pelo dia em que me entraria em trabalho de parto e me entregaria o seu filho com muita relutância. Dom Pedro regressou ao nosso palacete praguejando pelo caminho por sua mãe não consentir que ele estivesse presente no momento em que o milagre do nascimento tivesse lugar. Era obvio que ele seria um estorvo nessa altura, além disso seria muita crueldade ter de silenciar à força a mulher que estaria a dar á luz. Quando a hora chegou reinava grande nervosismo naquela casa, os corações batiam a um ritmo acelerado e com batidas fortes quase magoando os peitos devido à ansiedade. O médico já lá estava, tudo tinha sido preparado ao pormenor, ao contrário das mulheres do povo da época, todas elas pariam em casa e sabe Deus às vezes que tipo de casa tinham, sem condições de higiene, por vezes sozinhas outras por “parteiras” sem qualquer tipo de formação e que não passavam de simples curiosas. Pelo menos ela estaria confortável, numa cama de lençóis imaculadamente brancos e desinfectados, sendo vigiada pelo médico que tudo faria para salvar mãe e filho se surgisse algum problema. Cada vez que ela soltava um grito eu encolhia-me desesperada em total pânico como se me faltasse o ar e a cabeça fosse explodir. As luzes por instantes davam a sensação que se apagavam muito devagar, enfraquecendo e afastando-se ficando cada vez mais distantes. Creio que o meu ar era de tal modo apreensivo que todos os presentes acharam graça e sorriram, até a parturiente se riu e comentou: - Eu é que estou a ter as dores mas parece que é a menina que está na angústia... Por um breve momento em que o silêncio fora rei, a calma é estrangulada com um grito que rasga a noite seguido de um choro de criança. Para grande espanto de todos surge mais um grito e um desabafo: - Já não aguento mais! Seguindo-se outro choro de mais uma criança. As outras serviçais cuidavam de limpar os recém-nascidos e de vesti-los. O médico era de opinião que não se desse a conhecer a mãe aos garotos, mas depois de tanto sofrimento era mais que justo, no entanto tal como o médico previra fora um erro muito grande pois a rapariga insistia em entregar um dos filhos e ficar com o outro. Graças à interveniência de Dona Maria Antonieta chegara-se ao acordo final, após a entrega de um bónus ele concordara em esquecer este dia. Na manhã seguinte, a rapariga fora embora levando consigo uma outra rapariga sua amiga e que cuidaria dela nos tempos seguintes. Mais tarde viria a saber que ambas num outro povoado se haviam instalado e trabalhavam por conta própria costurando para as senhoras da região. Havia pago um preço muito alto, mas pelo menos conseguira concretizar o seu sonho! Como eu ficara feliz por ela... Agora começava o meu grande papel! Tinha de permanecer na cama para que ninguém desconfiasse e representando um ligeiro incomodo quando me sentava ao mesmo tempo que olhava verdadeiramente cheia de ternura para aqueles dois anjinhos que estavam nos berços ao lado da cama. Nessa mesma manhã fora mandado um mensageiro dar a boa nova a Dom Pedro mas sem revelar o sexo e o número de crianças. Enquanto Dom Pedro picava freneticamente o seu cavalo para chegar o quanto antes junto de nós, as irmãs de Dom Pedro faziam uma pequena guerra a Dona Maria Antonieta para que esta as deixasse passar para verem o bebé e quem sabe desdenharem, colocarem algum defeito... Sabe-se lá! Dom Pedro ouvia-as a gritarem com a senhora sua mãe, ainda não entrara em casa. Irrompeu sem se ser noticiado e gritando, pregando um valente susto nas suas irmãs que quase desmaiavam. - Mas o que vem a ser isto? BASTA! - Nós só queríamos ver o bebé, e entregar os nossos presentes... - reclamavam as mulheres. - Dêem cá! Eu entrego-lhe mas hoje bem que podem ir para as vossas casas e para os vossos afazeres que a senhora minha esposa a Dona Beatriz ficará a descansar sobre a minha vigilância! – Ordena-lhes Dom Pedro agressivo e muito zangado. - Mas... Iam a responder algo quando Dom Pedro as interrompe e as vai empurrando para fora de casa. - Vá, vá, vá, que raios de mulheres são vocês? Já deviam estar nas vossas casas a tomarem conta dos vossos filhos e maridos... Que vergonha... Desandem! E dito isto fecha a porta atrás delas, ainda com os embrulhos nas mãos e olha para a senhora sua mãe que ria perdidamente. - Ai Pedro, só tu para as pores na ordem! Bom meu filho podes subir mas tem atenção que a tua esposa está muito cansada e debilitada. - O que aconteceu pelo amor de Deus? - Pergunta Dom Pedro angustiado. - Calma Pedro, sê homem e entra no quarto principal mas devagar, sem barulho e sem brusquidão. Vá agora mando eu! Nem mais uma palavra, sobe pausadamente e vai ter com a tua amada. Dom Pedro apesar de toda a sua autoridade, obedecia cegamente a sua mãe. Subira as escadas pé ante pé somente com o seu coração que batia tão forte que se ouvia por fora e antes de abrir as grandes portas do quarto parou por uns quantos instantes. Fechou os olhos e respirou fundo tomando coragem para enfrentar o que estivesse do lado de lá. Mal abre as portas e dá os primeiros passos para o seu interior, abre muito os olhos, deixa cair o queixo e corre até à cama onde deita a sua cabeça no meu colo e chora desalmadamente como uma criança até lhe faltar o ar. Assusto-me de tal forma que grito por socorro, cheia de aflição. Dona Maria Antonieta corre ao nosso encontro vendo tal situação grita com seu filho. - PEDRO! Parece impossível! Não és homem não és nada, nem pareces meu filho! - Mas mãe... Tenta Dom Pedro responder à senhora sua mãe que continua a bater-lhe com o leque no braço com tal violência que o quebra. - Sinceramente a tua esposa fora muito corajosa e tu comportas-te deste modo? Olha só como a apoquentas! E olhando para mim viu-me a chorar só que ambos não haviam percebido que devido ao meu nervosismo eu não chorava mais de preocupação mas sim de tanto rir. Quem haveria de dizer ou mesmo presenciar um homenzarrão como Dom Pedro tão austero chorando como um bezerro desmamado... A muito custo consegui conter-me. A minha atenção virou-se então para os berços onde ambos os bebés berravam assustados, interrompidos do seu soninho clamando por uma muda de roupa e por leite. Dom Pedro esperava ansioso por me ver dar de mamar aos bebés mas tal seria impossível e pelas razões óbvias. Dona Maria Antonieta a senhora minha sogra informara o filho que eu estava muito fraca, havia perdido muito sangue e devido ao esforço físico não tinha leite. As crianças teriam de ser alimentadas por leite mas não o da mãe. Dom Pedro encolheu os ombros, para ele não tinha problema desde que eu ficasse bem e as crianças sobrevivessem ao primeiro ano de vida. Quando ficámos sós em silêncio com os anjinhos compostinhos no soninho tranquilo, Dom Pedro segreda-me ao ouvido. - Bia, és a minha rainha senhora minha, que alegria me destes. Juro por Deus que serei o marido à altura de uma Deusa, que surpresa meu amor, dois bebés e ainda soubeste diferencia-los... A menina que eu tanto queria e um macho, orgulho de qualquer pai! Depois de tanto tempo já tinha perdido as esperanças, mas nada, mesmo nada me impedirá de te respeitar e ser fiel! - Mas Pedro e os outros meninos? Não quero que um dia mais tarde haja disputas pelos direitos e bens. Digo-lhe referindo-me aos “bastardos” da serviçal, ao que ele me responde. Não te preocupes minha rainha, eles jamais te incomodarão nem aos nossos filhos, além disso rainha minha tens a certeza absoluta de que eram meu? Estes, eu sei que são! Senti-me tão mal que desatei num pranto... Como doía tamanha mentira, os bastardos eram sangue do sangue de Dom Pedro, eu tinha a certeza que carregavam o mesmo sinal na perna direita e que meu marido tinha. Aquelas duas crianças, não! Mas aos olhos dele eram perfeitas e dava graças a Deus por não terem as marcas principalmente a menina. A partir daquele momento Dom Pedro quase que obrigava meio mundo, inclusive a própria família a prestarem-me honras e obediência. Num piscar de olhos e passara de sentir o desdém e a chacota das outras mulheres por não conceber e não dar filhos a Dom Pedro, como se fosse uma mulher incompetente, para ser agora a grande rainha do império ao dar a Dom Pedro não um mas sim dois filhos de uma vez só. Dona Maria Antonieta tecia elogios, enchia a boca para falar em como eu era uma excelente mãe, cuidadosa, carinhosa e muito vigilante ocupando-me eu mesma de tratar das crianças em todas as ocasiões e a todo o momento ao contrário da maioria das outras mulheres da sociedade que largavam os filhos nas mãos das amas para andarem rua acima, rua abaixo, nas confeitarias falando na vida alheia perdendo assim os momentos mais bonitos da vida dos seus filhos. E quando ela isto dizia olhava sempre fixamente para as suas filhas que ficavam desconfortáveis como se aquele chapéu lhes caísse bem assente em suas cabeças. Eu ria-me, ria-me a bom rir mas por dentro pois minha falecida mãe havia-me dado bastante chá em pequena e falta de educação era coisa que eu não tinha! Os meus filhos foram crescendo robustos e saudáveis, Dom Pedro está junto deles correndo de lá para cá, provocando enormes risadas nos pequenitos que o tentam agarrar. Já com quatro anos de vida consigo por momentos deitar-me no meu tapete de flores do meu jardim secreto e contemplar em paz o céu do meu universo. Fecho os olhos, deixo-me adormecer viajando pelo espaço do inconsciente a uma velocidade vertiginosa que me deixa asfixiada e acordo sobressaltada. Olho em meu redor e não acredito no que vejo... Estou deitada numa cama com um colchão de palha e coberta com uma velha e esburacada manta de lã. Do meu lado tenho uma pequena mesinha com um pires e sobre ele uma vela acesa. As paredes do quarto, num pequeno cubículo sem janelas são acinzentadas com tufos de bolor criados pela humidade, o ar é tremendamente abafado e cheia a mofo. Numa das paredes existe um pequeno espelho manchado pelo tempo, agarro na vela e vejo-me reflectida nele... Estou suja, desgrenhada, sou jovem ainda talvez uns simples quinze anos e estou descalça! Os meus pés têm muitos calos, estão negros e cheios de frieiras de acordo com o meu vestido velho e umas vinte vezes remendado. SOU POBRE! De repente entra naquele cubículo uma mulher muito gorda de proporções fora do normal e grita-me. - Prá cozinha! O teu avô não tarda a levantar-se senão tens o pequeno-almoço feito é sempre a mesma batalha, ai se o teu pai fosse vivo... Seria tudo tão diferente... Despacha-te filha ou queres levar com o cinto outra vez? E dizendo isto sai a chorar. Devido ao seu problema de saúde, ela inchava muito dando a impressão a quem não soubesse da nossa condição que era demasiadamente gorda quando na realidade passávamos muita fome. Apressei-me a preparar a refeição da manhã para o meu avô e a marmita para ele levar para a mina. O meu avô era um homem enorme, rude, quase analfabeto mas o único ganha-pão lá de casa. A minha avó fora uma mulher infeliz vitima de maus tratos quando ele chegava a casa completamente bêbedo. Tinha eu apenas cinco anos quando ela recebera a última tareia de tal ordem violenta que ficara no chão da cozinha a sangrar pela boca e sufocando lentamente. Mesmo na manhã seguinte quando ele chegou à cozinha e a viu no chão estendida ficara tão cego de raiva por não ter o pequeno-almoço feito que desatou ao pontapé na cabeça e nas costelas parando apenas quando se deu conta que ela não lhe respondia. Apesar de em mil oitocentos e cinquenta e nove haver já investigações por mortes suspeitas, nada levava a Polícia a entrar naquele bairro de mineiros, principalmente na zona mais degradada e suja. Um polícia havia tido uma morte lenta e agonizante depois de ter sido mordido por duas ratazanas quando perseguia um ladrão que se enfiara por aquelas ruas escuras e imundas onde grande parte dos mineiros vivia. Às vezes perguntava a Deus em pensamento, porque permitira que o meu querido pai morresse soterrado na maldita mina, enquanto aquele monstro nos tornava a vida num verdadeiro inferno. A minha mãe passava a vida a dizer-me. - Filha não lhe desejes a morte! Apesar de tudo é ele quem nos dá um tecto e algum pão na mesa, se ele nos falta somos escorraçadas daqui e dormiremos na rua com as ratazanas a comerem-nos vivas... A mim nenhum homem me faria mal por causa desta maldita doença e pelo tamanho que tenho, mas a ti filha... Meu Deus nem quero pensar nas maldades que te fariam, por isso meu amor, pede antes para que ele viva e trabalhe por muito tempo até te casares. Desde que tenhas quem te trate bem e um cantinho melhor que este, depois nada já mais me importará! Até lá querida sê uma boa menina, faz tudo o que ele mandar para não ter que te bater. Por favor... A minha mãe foi agravando a sua doença e como não havia dinheiro para um médico e muito menos para remédios, foi piorando de tal forma que já não saía da cama, sofrendo dores e mais dores devido à perda das funções de alguns órgãos internos e ao fim de muito sofrimento deixou a vida. No seu funeral, quando perguntaram a meu avô se, se queria despedir dela, ele simplesmente olhou para ela, escarrou-lhe para cima do rosto e chamou-lhe. - NOJENTA! Vai mas é morar nos quintos dos infernos, imprestável! Conhecendo o meu avô, ninguém se atreveu a soltar um pio, apenas abriram os olhos de espanto e repulsa perante o cenário que se lhes apresentava. No final, várias pessoas me abordavam para me cumprimentar, dizerem meia dúzia de palavras meias quando de repente sinto uma grande bofetada no rosto que me fez cair por cima da campa de minha mãe, depois agarrou-me pelos cabelos arrastando-me até casa. O que o enfurecia era que eu apesar dos meus quinze anos já não tinha lágrimas para chorar e quando ele maquiavelicamente olhava para mim esperando ver sofrimento estampado no rosto eu simplesmente lhe oferecia um sorriso de orelha a orelha. Na semana seguinte enquanto ele estava ausente eu era visitada por uma senhora da cidade que sabendo da minha situação estaria disposta a pagar uma soma razoável a meu avô para me libertar e fazer de mim sua Dama de Companhia. Não me opus mas nunca ganhei esperanças que tal viesse a acontecer. Quando finalmente meu avô fora à cidade tratar dos pormenores, voltara nesse fim de tarde com um sorriso no rosto. Estranhei e senti um calafrio ao vê-lo assim, algo não estava bem, nunca o vira sorrir. - Alice... Chega aqui! – Ordenou ele. – Hoje estou muito contente! Vais para a cidade para casa de uma senhora fina, serás sua criada! Se te queixavas que trabalhavas muito aqui vais ver como vai ser lá aha ah ah ah ah ah. - Deu uma gargalhada enorme que se ouvia na rua. O que fora dito a meu avô era que eu iria servir naquela casa tendo um serviço muito duro, apenas a melhoria é que dormiria dentro de casa em cama limpa e com um quarto com janela e uma porta que me daria alguma privacidade. Hoje pela primeira vez jantaria com ele na cozinha, ao seu lado e bebendo um pouco de vinho. Já podia alegrar-me por saber que iria sair dali e deixar aquele velho horroroso, imundo sempre com aquele bafo a vinho fermentado que lhe saía da boca, com uns dentes tão negros como o carvão. No final da refeição pela primeira vez sentou-me ao seu colo e colocou um embrulho de papel pardo em cima da mesa e disse-me. - Sabes? Tu és a única de quem eu gosto, entendes rapariga? Tenho defeitos mas gosto de ti à minha maneira. Fiquei desconfiada, mas dei-lhe um abraço. De seguida entrega-me o embrulho e diz-me para o abrir em silêncio. Os meus olhos não acreditavam no que viam, era um lindo vestido azul água e uns sapatos pretos. - Agora vai dormir que eu tenho de sair! - Disse-me ele ao que obedeci sem reclamar, levei os presentes para o meu quarto deitei-me e adormeci tranquilamente pela primeira vez. Fui acordada pelo estrondo de uma porta a bater e um cinto a cais em cima das minhas costas pelo que de um pulo só me coloquei de pé ao fundo da cama. Era meu avô com uma bebedeira, não de cair para o lado mas ficara atravessado e agora é que eram elas. Ordenou-me que vestisse o vestido, calçasse os sapatos, lavasse a cara e me penteasse o que assim fiz, ainda a medo apareci junto dele ao que ele ao olhar para mim de olhos arregalados, ia-se babando para as suas longas barbas e com a garrafa que tinha na mão, acerta-me com ela na cabeça na tentativa de me atordoar. Caio realmente para cima da cama ao que ele se atira para cima de mim tentando imobilizar-me de forma a tentar violentar-me que após uma luta desenfreada entre nós os dois, consegue levar a sua vontade a cabo. Cerrei os dentes e deixei, rendida a que terminasse o seu acto louco, de modo a não me magoar muito fisicamente pois as marcas psicológicas ficariam para sempre tatuadas na minha memória. Assim que ele adormeceu, levantei-me pé ante pé e saí de casa, com o meu rosto inchado, a cabeça a sangrar, a alma traumatizada e o vestido azul água manchado de vergonha, corri, corri sem parar, só queria chegar à cidade e procurar por D. Augusta pois sabia que me acolheria. Fui caminhando ao longo da linha do comboio e chegando à próxima estação estaria na cidade bastava atravessar a rua e estaria em frente ao casarão de D. Augusta. O caminho foi longo e o cansaço abatia-se sobre mim, começando a sentir arrepios de frio, um tremor repentino, as forças a faltarem-me, de repente a luz começou a escurecer quando na realidade o sol começava a nascer. Finalmente chegara à estação, atravessei a rua e toquei na campainha caindo sem sentidos. Acordei numa cama fofa e quente, olhando em redor através da janela viam-se os raios de sol a penetrarem pelo quarto embatendo nas paredes brancas, tão brancas como a neve. A porta do quarto abriu-se e entraram D. Augusta e uma criada que me trazia um chá de ervas. - Como te sentes pequenina? – Pergunta-me D. Augusta e continua. - Bebe este chá que a Celeste preparou, vai evitar-te muitos problemas, podes contar sempre com ela! É uma Índia que trouxe do Brasil e que estava destinada a ser sacrificada num ritual. Ela sabe destas coisas. Acenei com a cabeça afirmativamente e obedeci tomando o chá de sabor amargo mas quente fazendo o meu sangue correr com uma temperatura agradável. D. Augusta mandou Celeste retirar-se e disse-me. - Agora nós minha querida... Quem te fez mal? Não respondi sentindo um conjunto de receios, medo de revelar e acusar o meu avô, medo das represálias, a vergonha que sentia e acima de tudo o medo que D. Augusta não me quisesse mais para ser sua Dama de Companhia, por isso puxei o lençol e os cobertores e tapei a cabeça tentando esconder-me e desaparecer. - Minha querida, não tenhas medo, estás sobre a minha protecção. Se não me quiseres falar basta que olhes para mim e quando for sim, piscas os olhos, se for não, abres mais os olhos, pode ser? Destapei a cabeça olhei para ela e pisquei os olhos. Mal acabara de o fazer ouvi a campainha e a voz furiosa de meu avô, abalroava todos os que se colocassem no seu caminho tentando a todo o custo encontrar-me. D. Augusta enfiou-me dentro do guarda-vestidos e mandou Celeste deitar-se na cama onde eu estivera anteriormente e fingisse que estava doente. Assim que irrompeu quarto adentro eu tremia como varas verdes, sufocando no meio da roupa mas sem me atrever a sair, por seu lado meu avô ao não me encontrar fica ainda mais furioso. D. Augusta pede por socorro e enfrenta meu avô. - Mas o que vem a ser isto? Saia já daqui! Ponha-se daqui para fora! Rua! Meu avô ia levantar a mão para esbofetear D. Augusta quando foi imobilizado por todos os criados da casa, levado no ar até à entrada e atirado para a rua como um saco de lixo mal cheiroso. Quando D. Augusta abre a porta do guarda-vestidos para que eu saísse e apesar de eu estar quase a desfalecer, não queria sair dali, foi quase necessário puxarem-me à força para que pudesse respirar. Cada vez mais sentia-me apavorada mas D. Augusta abraçou-me e garantiu-me que aquele homem jamais me voltaria a ver. Dias mais tarde já recuperada, ganhando forças acompanhava D. Augusta para todo o lado, aprendera a ler e a bordar e algumas semanas depois chegava-nos a notícia de que meu avô havia falecido depois de uma violenta briga com dois outros homens que o deixaram abandonado e a agonizar dentro da sua própria casa. Levara quase catorze dias num sofrimento atroz com várias fracturas, sem se poder movimentar, passando fome e ironicamente sendo devorado pelas ratazanas que seguiam o cheiro a sangue. Não pulei de contente, não cantei de alegria apenas suspirei de alívio, no entanto havia uma ponta de tristeza, estava sozinha no mundo, não tinha mais família o que fora compensado quando D. Augusta se tornou minha tutora. Passei a ter novo apelido, a ter aulas de boas maneiras e compostura, um preceptor para a língua Francesa, a Geografia, outros temas da época e piano. Tinha vestidos dignos de uma princesa, um porte de menina bem, era acarinhada por todos e o momento auge tomou lugar no baile que D. Augusta proporcionou para que eu fosse apresentada à sociedade. Havia vários promissores pretendentes, de boas famílias que tentavam captar a minha atenção... Não podia estar e ser mais feliz! Num momento de distracção ausento-me do salão e sentei-me no banquinho de jardim onde costumava ler um livro para D. Augusta. Deixo-me encostar observando maravilhada a lua e a via láctea que me veio visitar acompanhada da leve brisa que me beijava o rosto suavemente, agitando as roseiras que ao serem embaladas soltavam os seus aromas doces deixando-me a viajar acordada. Fecho os olhos por breves segundos para voltar a uma nova realidade. Abrindo os olhos sinto frio, um frio tremendo, que quase me congela os ossos. Estou no cimo da montanha com um horizonte de um branco imaculado tocando e matizando-se com o azul celestial de um céu limpo iluminado pelo sol. Oiço chamarem-me... É a minha mãe! Uma senhora simples de cabelos cor da neve embrulhada num xaile de lã pura tingido de cor de rosa. Mal entro no casebre, o ambiente muda, por fora é simplesmente um grande casebre, feio e frio mas no seu interior foi construído com magia e muito amor. É quente, aconchegante, a cozinha não só conserva o calor do fogão a lenha como também mantém o resto da casa relativamente quente. Sentei-me à mesa em frente aquela velhota que me dera vida, serviu-me um chá de ervas e ficamos ali em silêncio olhando uma para a outra de mão dada, sorrindo, apreciando o sabor de tão agradável bebida e aquecendo o meu coração com o enorme carinho que sentia por ela. Apesar de ter sido casada, ainda não tivera filhos e o destino faria com que nunca os tivesse. Os tempos eram turbulentos, o Rei havia sido assassinado, a família real perseguida e a vida na capital era um tumulto constante. Ficara viúva durante a revolta e a queda da monarquia, sem família por perto, completamente sozinha não pensei duas vezes, abandonei a minha vida citadina e segui um destino de paz. A vida podia ser tão simples... Minha mãe era viúva também, sabia como era duro viver só enfrentando a solidão, sem ter com quem “falar”. Acolheu-me de braços abertos, andava radiante por ter companhia, sentindo-se de certa forma protegida por não ter de dormir como se fosse o único ser humano ao cimo da terra. Havia um único quarto, com duas camas separadas onde adormecia-mos olhando e contemplando a beleza de cada uma de nós. Céus... como eu a adorava! Durante o inverno não tinha-mos lençóis brancos na cama mas sim “lençóis que ela fez com as suas mãos e pêlo de carneiro”. No inicio estranhei mas que nos mantinham bem confortáveis não há como negar... Os cobertores de cores cruas eram igualmente feitos à mão, por mim e por ela ocupando-nos assim todas as tardes. No primeiro fim-de-semana de cada mês o Senhor Inácio subia a montanha levando-nos produtos frescos, carne e peixe e algum dinheiro resultante da venta dos cobertores e que na aldeia eram muito apreciados. Sempre que lá ia a casa perguntava se havia mais para vender ou se queríamos ir até à aldeia com ele de boleia na sua carroça, coisa que sempre recusamos ao que ele nunca conseguia entender porquê. Não nos faltava nada, tínhamos galinhas e cabras, um celeiro com cereais, farinha e um fumeiro, enfim nada fazia falta. Para quê ir até à aldeia? Apanhar frio? Enquanto a minha mãe esteve só, nunca o fizera, não queria que as pessoas falassem que andava na companhia de um homem, não que ela tivesse de dar explicações fosse a quem fosse e sendo viúva nada nem ninguém teria de se meter na sua vida. Mas em meios pequenos basta um simples e inocente comentário para se transformar de boca em boca num terrível boato, grandes zangas e até actos tresloucados de vinganças. Apesar de sermos duas, mãe e filha por sermos ambas viúvas também queríamos assim ficar, sem termos que ter uns quantos pretendentes atrás de nós a quererem-nos fazer a corte, a falarem que faziam e aconteciam, a quererem vingarem-se de nós cada vez que recusássemos qualquer das suas investidas. Estávamos muito bem ali refugiadas no nosso belo cantinho. Nunca me cansava mesmo em pleno inverno e com uma temperatura negativa de sair da nossa casa e ficar horas a observar o horizonte, sentindo as vozes silenciosas da mãe natureza, as cores que despontavam na primavera, nas tardes mais quentes e nos aromas das flores silvestres em pleno verão e a magia das nuvens que corriam em tons mesclados de brancos, cinzentos, rosas e laranjas nos fins dos dias de Outono. Para quê um homem ali? Para nos causar mais trabalho? Aturar mau feitio? Bebedeiras? E tantos outros dissabores? Só porque aos olhos dos outros devíamos ter um macho para se deitar ao nosso lado com a desculpa de nos aquecer os pés? Que desculpa tão estúpida! Éramos independentes, não precisávamos de um homem para nos sustentar e ainda tínhamos o nosso pé-de-meia amealhado. Um dia, tive de ir à aldeia a pé, chorando amargamente durante todo o caminho até chegar à igreja, onde todos os olhares mais pareciam um autêntico batalhão de fuzilamento por ter interrompido as suas falsas orações, quando a maior parte deles nem o sinal da cruz sabia fazer. Apenas o sacerdote percebera que algo não estava bem e o desespero que estava estampado na minha cara. A minha mãe tinha falecido pacificamente durante o sono. Embora a quisesse enterrar junto de casa, não era permitido e teria que ficar no cemitério da aldeia. Combinara com o padre todos os preparativos para o funeral, longe da algazarra daquela gentinha mesquinha. Assim o senhor padre e o senhor Inácio levaram-me de novo a casa onde fora dada a “Extrema-unção”, fora feita a encomenda da alma a Deus e na noite seguinte quando a aldeia apagasse as luzes e adormecesse, faríamos o funeral em paz. Ficaria a dever um favor ao Prior, mas mais tarde tudo se resolveria. Apesar de ter de ficar com um corpo inerte, sem vida durante todas aquelas horas não me incomodava, veio até dar-me tempo de me despedir de minha mãe e guardar a sua imagem para sempre na minha memória. Temia que quando na aldeia soubessem que eu estaria só, mesmo morando no cimo da montanha, que aparecessem curiosos a tentarem a sua sorte com a minha pessoa, receio esse que confessei ao prior. Este por sua vez, precisava de arranjar alguém que se ocupasse de uma sua sobrinha surda-muda e com a qual ele não sabia lidar. Estava em sua casa e ele próprio sentia na pele o bichanar daquela gente maldosa mas que se diziam tementes a Deus. Como a minha mãe era também surda-muda, ofereci-me para cuidar da rapariga se ela aceitasse viver comigo lá em cima no meu cantinho. Era ainda uma criança de onze anos, estabeleci contacto visual e por meio de gestos um tanto ou quanto desajeitados, fiz-me perceber e a menina saltou para os meus ombros num abraço prolongado. Parecia que lhe tinham aberto as portas da esperança e esboçava um sorriso quase de orelha a orelha sempre de mão dada à minha criando ali um laço terno e eterno. Tornara-se numa menina calma, tranquila, aprendia tudo o que lhe ensinava, apaixonando-se pela arte em que eu e a minha mãe tínhamos em comum. Os nossos cobertores! O Senhor Inácio continuava a visitar-nos não de mês a mês mas sim de quinze em quinze dias, levando-nos tudo o que precisávamos a poucos custos. Eu sabia que atrás de tudo isso tinha a mão do padre mas compreendia e nunca havia recusado nada, não porque a menina estava lá em casa para eu lhe fazer um favor, mas porque podia melhorar um pouco mais a nossa alimentação mesmo porque ela era uma criança ainda em fase de crescimento. Chegando a primavera a minha querida menina já sabia escrever, emitir sons em forma de palavras simples e em segredo contou-me que achara o seu anjo da guarda na minha pessoa. Era o seu sonho seguir para um convento e tornar-se freira, mas devido à sua condição de surda-muda não lhe seria permitido concretizar esse sonho. Ali, sozinha comigo, no cimo da montanha tão perto do céu encontrara ali a paz e a proximidade com Deus que tanto ela desejava. Aquela menina acabaria por ser a filha que nunca tivera, teria por mim o mesmo carinho que eu tivera com a minha saudosa mãe. Depois de eu partir, aquele cantinho de amor puro seria dela por testamento. Deixando todos os meus pensamentos ordenados, sobre o sol quente de uma tarde de primavera, contemplando a magia da natureza que nos seduz e nos puxa ao contacto com a terra de que somos feitos, adormeço tranquilamente. Hum… hummmm já me vejo! Sou matéria, sou de carne e osso, estou de volta ao meu estado actual, recostada mas aliviada, compreendo agora quem fui como reencarnei, amei, fui amada, maltratada e até mesmo como fui feliz junto da terra mãe. Sei já o que passei, o que provavelmente irei passar e encontrar, mas a felicidade lá estará, cabe-me agora a mim tomar o rumo da minha vida com o que aprendi na reencarnação de todas as outras. Se posso mudar o meu destino? Depois das minhas reencarnações, é claro que posso! - FIM -