Desafio Escrever um Conto Dezembro de 2010 www.portugalparanormal.com A Luz Misteriosa por Margarida Estava tão sozinha neste mundo, tão abandonada de amor e no peso de todo o meu ser só a razão me fazia viver. Era Natal, as luzes que enfeitavam as ruas, lojas ou lares particulares a mim já nada me diziam, antes pelo contrário, detestava-as, encandeavam-me os olhos já velhos e cansados. Este frio, gela-me a carne quase apodrecida pela falta de higiene, pela subnutrição, pelo sol e por tudo o que um sem abrigo está sujeito enquanto o coração teimar em bombear, alimentando uma vida mesmo que miserável ela seja. Já não tenho lágrimas para verter recordando os meus anos de glória, das multidões que encantei, dos livros que escrevi e dos homens que se confrontavam numa luta desenfreada para captarem a minha atenção na tentativa vã de me seduzirem. O coração aperta-se-me ao recordar os quatro filhos que tive, os gémeos e as minhas outras duas filhas. Agradeço a Deus por saber que elas estavam muito bem na vida, da última vez que tive conhecimento delas. A minha Dolores casou com um diplomata holandês, passa a vida a viajar acompanhando o marido nas cimeiras e actos políticos. Deixou para trás a nossa bandeira portuguesa e a terra, a capital onde nasceu, costumo vê-la nos telejornais, pelos televisores das lojas de electrodomésticos, quando os gerentes ou mesmo os empregados não me escorraçam com palavras duras e azedas, mesmo quando estou apenas de fora das suas lojas. A minha outra filha é médica pediatra, anda sempre muito ocupada, viciada no seu trabalho entre o hospital e o seu consultório particular. Nunca entendi a ironia da vida, como é que uma mulher como a minha filha que nunca quis ser mãe, odeia crianças, não suporta o barulho que fazem, o que sujam e o trabalho que dão, e vai tornar-se pediatra? Eu sei que sou uma velha tonta, miserável como me chamam, mas isto faz algum sentido? E a miserável sou eu? Também vive sozinha mas numa bela casa com empregada, sem companhia, não gosta nem de homens nem de mulheres, sempre disse que não tinha pachorra para os aturar. Os meus gémeos são a razão pela qual durmo na rua. Entraram no caminho obscuro da delinquência, roubaram-me tudo, falsificaram a minha assinatura e o dinheiro que levei anos a juntar desapareceu de um momento para o outro. Não sei se estão vivos ou não! Recorri às minhas filhas mas não me quiseram reconhecer, sou a vergonha da vida delas, não me admira que já tenham em seu poder uma certidão de óbito em meu nome mesmo estando eu a respirar este ar que todas as outras pessoas também respiram. O meu marido partiu há tanto tempo… Ele jamais permitiria que me tratassem assim, queria tanto estar ao pé dele… Tenho de arranjar mais cartões, dizem que a noite vai arrefecer terrivelmente. Só peço a Deus que faça alguém esquecer-se de fechar o portão de um prédio qualquer pois assim mesmo no desconforto dos degraus sempre poderei dormir mais abrigada. A porta do teatro velho está tombada! Acho que consigo lá passar, as autoridades hoje não estão por perto, por isso não deve haver problema. Dizem que o velho teatro está assombrado por uma velha corista que fora assassinada pelo contra-mestre num acto de ciúme doentio. Segundo contam, o seu espírito ameaça toda a vivalma que a importunar no lugar onde resolveu tornar a sua última morada. Para mim não passam de histórias para que o edifício não seja invadido por pobres almas como eu, ou mesmo por drogados ou até prostitutas de rua. Já nada me mete medo e agora que já cá estou ninguém me vai arrancar de cá, vou ficar caladinha, não contar a ninguém para que não corram comigo novamente. Parece que não sou a única que encontrou passagem, está ali ao fundo uma luz. Não sei se deva ir, mas sinto um calorzinho vindo de lá, não resisto! É um camarim! Será que vive aqui algum artista? - Entra! Chega-te à lareira! Bebe um chá quente comigo! Nem pestanejei, obedeci de imediato. - Senta-te! Eu sou a Joaquina, vivo aqui há anos, acho que sei quem és, também foste artista. - Sim fui, agora já não sou nada! - És sim! És a minha sucessora, a guardiã do meu chão sagrado! Dei-me conta que a tal Joaquina era a corista falecida que assombrava o teatro velho, assustei-me de tal maneira que corri dali para fora deixando para trás os meus parcos pertences. Posso ter de dormir na rua, morrer congelada mas não ia permitir que tal assombração me arrastasse até aos quintos dos infernos. Depois de andar horas à procura de um lugar para me encostar, apenas consegui refugio debaixo de uma ponte abandonada, sempre era melhor que nada, pelo menos era o mais parecido com um tecto sobre a minha cabeça. Acho que não estava sozinha, uma luz brilhante moveu-se e parou sobre algo, não queria lá ir, depois do susto que apanhara no teatro velho, não queria saber de mais luzes misteriosas, mas o frio era tanto que tive de deixar o medo para trás das costas e satisfazer a minha curiosidade. Quem abandonara tal preciosidade? Como não era pobre e mal agradecida, aproveitei a oportunidade sem me preocupar com a luz misteriosa que teimava em não me abandonar. Confesso que não dormia assim há anos, estava confortável e relativamente aconchegada, enfim mais uma noite que passara, mais um novo dia para sobreviver. No final da tarde a luz misteriosa acompanhou-me umas vezes lado a lado outras à minha frente como quem queria que a seguisse, como se fosse um guia. Durante dias e dias eu a seguia, não conseguia fugir-lhe, arrastava-me sempre para o mesmo lugar, para a porta do velho teatro! Fui passando meses e meses, estações do ano até novo inverno me maltratar. Certo dia a ponte ruiu e o meu refugio já não o era mais, a luz misteriosa guiara-me de novo ao velho teatro onde entrei novamente e me deixei cativar por Joaquina. Já não a temia! Para muitos que por ali passaram ela era um poltergeist terrível, por muitos exorcismos que fizessem, por muitos médiums que tentassem libertar o lugar do espírito em vez de lhe darem paz, apenas a enfureciam mais. Aquele era o seu chão sagrado, a terra e o pó de que era feita, ali nascera, ali falecera e só partiria em paz quando o seu objectivo fosse atingido. Ao fim de uns tempos também eu faria parte do mundo espiritual podendo ainda ser presenteada por algo maravilhoso, por parte da alma da minha amiga. Os meus gémeos haviam sido libertados do presídio e do mundo da delinquência, por incrível que parecesse o dinheiro que me haviam furtado, tinham-no investido na compra deste imóvel abandonado e que agora o queriam tornar útil. Tinha de lhes dar uma oportunidade! Joaquina encarregou-se de guiar Perpétua a minha filha do meio ao encontro dos irmãos. Entre algumas partidas paranormais os três sentaram-se à mesa, fizeram as pazes e planos, muitos planos, projectos e iniciaram uma obra que depois de concluída me daria o descanso eterno e me encheria de orgulho. Mais uma vez a luz de Joaquina fez reunir mais outro elemento essencial ao grupo, Dolores… Dolores viera à sua terra Natal acompanhada pelo seu marido para apoiar as negociações europeias para o apoio na luta contra a fome e a pobreza. Ao tomar conhecimento do projecto dos gémeos o diplomata agarrou a causa ao ver o esforço na reinserção deles na sociedade como cidadãos de acções sociais beneméritas. O projecto ganhou alguns fundos comunitários devido ao seu empreendorismo e até Dolores se orgulhava das suas raízes. Iniciaram-se as obras, os gémeos trabalhavam de madrugada a madrugada num esforço quase sobre humano enquanto Perpétua se encarregava de outros trabalhos de preparação para cuidados médicos. Dolores cuidou do aspecto físico e interior do edifício mas, apesar do esforço de todos a obra era maior do que fora prevista. O desespero começou a apoderar-se dos meus filhos, queria fazer algo por eles mas já nada podia fazer, já não fazia parte do mundo deles. Joaquina a luz misteriosa deixou-me o seu legado partira finalmente para a paz e cabia-me agora a missão de guiar as minhas “crianças”. Pois bem em luz me transformei, ao presídio os meus filhos guiei! Souberam entender a mensagem e aos que dali saiam no velho teatro encontraram abrigo, conforto e trabalho. Em pouco tempo o velho teatro ganhara vida, havia vozes, risos, calor humano e o nascer de um sentimento novo na minha filha do meio. Caíra de amores por um ex-presidiário a quem os irmãos deram uma nova oportunidade de vida. Sendo esta minha filha a ironia em pessoa, não tardou muito, antes da inauguração do novo edifício, a perceber e constatar que se encontrava de esperanças. Para quem odiava crianças, andava nas nuvens, deliciada com as varias etapas da sua transformação corporal ao trazer no seu ventre uma nova vida. Em Dezembro fora feita a inauguração oficial da nova casa dos sem abrigo e meninos de rua. Pensei que seria um sucesso mas não o fora, todo o esforço que fizeram parecia ter sido em vão, durante duas semanas o novo abrigo não albergou ninguém. Também pensara que a minha ultima missão tinha chegado ao fim, mais ainda teria algo mais reservado para cumprir. Era já véspera de Natal e os meus filhos morriam de tristeza, faziam contas à vida e não viam a tão desejada luz ao fundo do túnel. Por falar em luz, o meu legado… Percorri as ruas da capital guiando todos aqueles que eram como eu fora antes, até ao nosso abrigo. Agora sim, a minha missão estava a terminar, a casa encheu-se de gente que se ajudava mutuamente, onde encontraram uma nova esperança e uma nova vida. Não percebi porque não podia ir eu agora ao encontro de Joaquina, ao palco do descanso eterno, à paz suprema. Enquanto me questionava o silencio desse instante fora interrompido pelo choro de uma nova vida envolta em luz. Nascera a minha neta! Era perfeitinha, linda! Oh não… não posso permitir que me chamem agora, por favor… Não façam isso a essa pobre criança, ai não! Não lhe chamem isso… Carlota Joaquina? Pelo amor de Deus… - Pois assim será! Carlota pela avó materna, Joaquina pela avó paterna. – Diz o pai. - Quê? Como? Não! Não pode ser… - Pode sim minha querida amiga! Está na hora de regressares à minha companhia para velarmos pelos nossos filhos e pela nossa neta. - Mas Joaquina… que nome tem a nossa neta, pobrezinha… - Não te preocupes pois o nome dela será a luz misteriosa de todo o amor nesse palco que é a vida de todos os que habitam no velho teatro, onde se padece e onde se renasce! - FIM -